São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
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A REBELIÃO DA PALAVRA

ESPECIAL PARA A FOLHA

A educação poética de Ginsberg começou cedo, desde que seu pai, Louis Ginsberg, poeta lírico, costumava recitar enquanto cuidava das tarefas domésticas. Em meados dos anos 40, ao mudar-se de Paterson (Nova Jersey) para Nova York, a fim de estudar na Universidade de Columbia, Ginsberg foi sacudido pela cultura negra americana por meio do jazz e do blues, ao mesmo tempo em que continuava seu estudo da poesia ocidental. Por essa época, encontra-se com Jack Kerouac, William Burroughs e Neal Cassady.
Juntos, fizeram seus primeiros experimentos com drogas. A par de sua imersão constante na literatura -quase sempre fora do ambiente acadêmico-, os beats (como eram conhecidos, a partir da expressão de Kerouac, "the beat generation") estavam sempre viajando. Tribo nômade em busca de liberdade, estavam sempre se mudando de Nova York para San Francisco, da Cidade do México para Tânger.
Na atmosfera repressiva e bem-comportada dos anos 50, o comportamento dos beats era escandaloso. Um acontecimento crucial para Allen foi o encontro com Peter Orlovsky, em San Francisco. Iniciaram um caso de amor que se prolongou por muitos anos.
Em sua luta para criar uma literatura livre das constrições formais da academia, uma literatura baseada na fala comum e vernacular, os beats foram muito atraídos pela música popular. Kerouac era fanático por jazz, devorando o bebop que se desenvolvia então. Mais tarde, sua técnica de escrita seria parcialmente baseada nas improvisações dos músicos de jazz.
Apesar de mais enraizado nas rimas simples do blues, Ginsberg ficou impressionado com a ousadia de Kerouac. Até que, em meados dos anos 50, libertou-se da poesia lírica amaneirada que vinha escrevendo e compôs um poema que Kerouac mais tarde batizou de "Howl" (Uivo). "Howl" dá a impressão de ser um jorro de exclamação extática e poética -observação e síntese fundidas num grito agônico.
Suas publicações foram submetidas a processos por obscenidade ("Howl" e "O Almoço Nu", de Burroughs), e os beats eram frequentemente denegridos pela imprensa como ameaças irresponsáveis e antiintelectuais à segurança nacional. Mesmo assim, conseguiram produzir uma enorme publicidade internacional e ainda servir-se dela, transformando suas atividades pessoais em atividades políticas.
Ao contrário de seu herói Neal Cassady e de seu "compadre" Jack Kerouac, ambos mortos nos anos 60, Allen Ginsberg, próximo dos 69, é um sobrevivente.
Vive há anos no mesmo apartamento no East Village, onde falou à Folha, e continua a escrever prolificamente. Ensina no Brooklyn College, em Nova York, e na The Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, que ajudou a fundar em Boulder (Colorado). Para manter sua arte sempre nova, está sempre atento ao que os garotos andam fazendo.
Durante boa parte de sua vida, Allen perseguiu o "desregramento dos sentidos", à maneira de Rimbaud, e a "expansão da área da consciência", de sua própria lavra. Seu caminho radical passou por muitas ocasiões de tédio, crítica amarga e mesmo loucura. Mas sempre há algo de fascinante em ver uma figura literária de primeira ordem, na ativa, tornar-se um ancião do Village.

Folha - O sr. dedicou um estudo, "CIA Dope Calipso", à história da legislação sobre drogas nos EUA e constatou que parece difícil que elas venham algum dia a ser legalizadas.
Allen Ginsberg - Bem, os republicanos estão pensando a respeito. Há certa pressão da parte do ex-secretário de Estado George Schultz, William Buckley, Milton Friedman -o filófoso do livre-mercado de Chicago- e ainda outros, todos dizendo: "Livre mercado!". A questão deveria ser ajustada pelo mercado e não pela intervenção governamental. Os liberais andam assustados demais para propor qualquer coisa. Carter tentou. Ele tinha um bom conselheiro sobre o assunto, um certo Born, que acabou demitido. Ele era médico, fornecia algumas pílulas para o pessoal da Casa Branca e foi acusado de cheirar cocaína. Born havia convidado a mim e a Peter para falarmos na Casa Branca sobre a política para as drogas.
Folha - E quanto ao sr. pessoalmente? As drogas ainda são importantes para o seu desenvolvimento psíquico?
Ginsberg - O lado político ainda é.
Folha - Mas não o uso efetivo?
Ginsberg - Fumo maconha de vez em quando. Não tenho tomado muitos psicodélicos. Experimentei "ecstasy" algumas vezes.
Folha - E o que acha da legalização?
Ginsberg - Ah, é simples. Acho que a maconha deveria ser legalizada enquanto produção de sobrevivência para as pequenas propriedades familiares em vias de falência, para reabilitar o campo. Talvez devêssemos manter a proibição de propaganda, para manter o comércio em bases pessoais. A heroína e os opiáceos deveriam ser devolvidos aos médicos para que curem os viciados ou, sendo isso impossível, para que mantenham seus hábitos.
O sistema da metadona é útil, mas pode ser um mau negócio, por estar burocratizado. Eles insistem em saturar as pessoas de metadona, para que não descambem para a heroína. Mas ouvi dizer que a metadona vicia muito mais que a heroína. A heroína foi concebida como substituto para opiáceos pesados. Quer dizer que a história está se repetindo. As drogas sintéticas são concebidas, uma depois da outra, como substitutos das originais. O ópio orgânico provavelmente seria a saída mais saudável, como os alimentos orgânicos.

Continua à pág. 5-5

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