São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
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Kravitz bota fogo

MARISA ADÁN GIL

Ele não usa roupa de baixo. Prefere cobrir o corpo com tatuagens, piercings, peles e couro. Não dispensa crucifixos -tem um enorme, de madeira, pendurado no banheiro de sua casa em New Orleans. Lenny Kravitz é um tipo raro. Tem um talento inegável, mas está preso a velhas obsessões: riffs de Led Zeppelin e Jimi Hendrix, aparelhagem antiga (nada de samplers ou sons eletrônicos) e visual anos 60. O menino que fugiu de casa para morar em carros alugados e lavar pratos em restaurantes de terceira categoria conquistou o mundo em 1993. Foi o ano de "Are You Gonna Go My Way", o terceiro disco -antes, havia lançado "Let Love Rule" (1989) e "Mamma Said" (1991). Depois do sucesso, compôs com Madonna (a polêmica "Justify my Love"), abriu shows dos Rolling Stones e tocou com todo mundo, de Al Green e Bob Dylan a Aerosmith e Guns'n'Roses. Agora, lança "Circus", uma mistura de baladas e rocks dançantes que traz sua marca: letras de amor e/ou religiosas e ausência de banda -ele toca todos os instrumentos. "Quero controlar tudo", diz, em entrevista exclusiva à Revista da Folha. Kravitz fala ainda sobre a morte do rock'n'roll, religião e testes nucleares. Sobre a vida pessoal, revela pouco. Teve tórridos relacionamentos com a modelo e atriz Lisa Bonet, de "Coração Satânico" (com quem teve uma filha, Zoe), com a cantora Vanessa Paradis, e -dizem- com a top Naomi Campbell.

"Circus" é um disco cheio de baladas, mas com muito peso na bateria. Ficou diferente dos anteriores.
O que eu fiz foi colocar a bateria no centro da música. Eu estava com muita vontade de tocar bateria na época, eu amo o instrumento. Mas também queria belas melodias, para não ficar um disco só rítmico. Ficou um som novo, que tem a ver com o jeito como eu estava me sentindo.
Você não tem grande simpatia pela dance music, mas lança discos dançantes. Gosta que as pessoas dancem ouvindo sua música?
Nunca penso nisso. Mas, se esse é o jeito que a pessoa encontrou para expressar a emoção que a música desperta, OK. Eu nunca danço ouvindo minhas músicas. Mas a verdade é que eu não ouço muito o meu trabalho. Agora, nunca disse que não existia música para dançar de boa qualidade. O problema é que a maioria é feita com samplers, não com instrumentos de verdade.
Como você responde às críticas que te acusam de plagiar Led Zeppelin, Jimmi Hendrix ou John Lennon?
Não existe nada original. Qualquer coisa que você ouve te lembra alguma outra. A música surge na minha cabeça, é assim que acontece. Não gosto de falar nisso.
"O rock'n'roll está morto", diz o título da primeira faixa. Está mesmo?
Não, não estou falando do rock'n'roll como um todo. Falo do lado financeiro, da máquina, do "circo" que acompanha o rock. Quando você é músico, tudo que quer é tocar. Não passo meus dias compondo para, no fim, virar um homem de negócios. Há muito dinheiro e política envolvidos. Só aguento a pressão porque amo tocar.
Você acha que os executivos estão matando a música?
Dê uma olhada nos grupos que as gravadoras estão contratando: são todos abaixo da média. Há alguns anos, você tinha que ser muito mais talentoso para conseguir alguma coisa. Agora, gente que mal sabe tocar ou cantar consegue um contrato. Tudo é voltado para a imagem. Há ótimos músicos por aí, esperando uma chance. Mas talvez eles não tenham a aparência certa, se é que você me entende.
Talvez a MTV tenha uma participação nessa história.
Sem dúvida. Mas não posso cuspir no prato que eu como, eu também estou na MTV. É inevitável. Só gostaria que as pessoas reaprendessem a ouvir música e usar a imaginação, em vez de "ver música".
Do seu último disco para cá, as coisas melhoraram ou pioraram no pop?
Está cada vez pior. Os ditos "astros" de hoje não teriam nenhuma chance se estivéssemos na década de 60 e eles tivessem que competir de igual para igual com Hendrix, os artistas da Motown, Al Green, Aretha Franklin, James Brown.
Você teria chance?
Não sei. Sei que seria músico, mas não sei se tentaria carreira solo. Talvez fosse só um cara em uma banda.
Você já disse que não encontra músicos bons o bastante para tocar em seus discos. Soa bem exagerado.
Eu gosto que as coisas sejam feitas do meu jeito. Quero controlar tudo. Então eu penso: se eu posso tocar aquele instrumento, por que chamar outra pessoa? Tony Breit e Craig Ross tocam em "Circus, mas é porque eles sabem quem eu sou e o que quero. Se não consigo achar mais ninguém com esse feeling, prefiro fazer eu mesmo.
Parece que os outros músicos não pensam assim. Prince, Mick Jagger, Guns'N'Roses, Aerosmith e Al Green já te chamaram para tocar com eles. Não seria natural retribuir o convite?
Seria. Mas, por algum motivo, não funciona desse jeito. Slash tocou em "Let Love Rule", mas é uma exceção...No geral, tenho ótimas relações com outros músicos. Os melhores são os mais acessíveis. O que gostaria é de trabalhar como produtor. Mas não tenho tempo.
Você é um homem de estúdio?
Quando entro no estúdio, saio fora do mundo. Entro no meu universo particular, entro na música. As referências religiosas são uma constante nas suas músicas. Nesse disco, há "Beyond the Seventh Sky", "God", "The Ressurection".
Prefiso chamar minhas músicas de espirituais. Religioso pode significar qualquer coisa, é apenas algo que você repete sem parar. Acredito em Deus, acredito em Jesus Cristo e essa é a base da minha vida. Escrevo o tempo todo sobre amor, Deus e relações pessoais. Se escrevo sobre algo diferente, como drogas, é para falar da decadência que representam. A música vem de Deus. O talento vem de Deus.
Você acha que o seu público pensa dessa maneira?
Não sei, talvez não. As pessoas estão muito distantes da sua espiritualidade. Temos que abrir nossos corações e pedir a Deus para entrar. Há um mundo espiritual esperando. Você pode fazer isso sozinho, não precisa ir a lugar nenhum para se comunicar com Deus. A humanidade não acordou para isso. Da mesma maneira que não acordou para o perigo da destruição da natureza. As pessoas preferem ignorar o problema.
Você ficou chocado com a atitude do presidente francês Jacques Chirac, que retomou os testes nucleares?
Yeah, é horrível. Só porque o país é deles, acham que podem fazer o que quiserem. Mas é o nosso mundo. E o que eles fazem no país deles afeta o nosso mundo.
Quais seus planos para depois desse disco?
Não faço planos. Mas talvez passe algum tempo com minha filha Zoe. Não tenho ficado muito com ela nos últimos tempos.

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