São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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São Paulo: uma cultura de negação

MARTIN MAYER

As dimensões da crise fiscal de São Paulo levaram ao surgimento de uma cultura da negação nas cabeças de seus líderes. A impressão que fica é de que existe um câncer em São Paulo. O câncer é a dívida, porque seus juros não podem ser pagos e crescem exponencialmente por meio do funcionamento normal dos juros compostos.
O secretário estadual das Finanças, Yoshiaki Nakano, nos contou que os juros que recaem mensalmente sobre a dívida contratual do Estado de São Paulo chegam a R$ 1 bilhão, mais ou menos o equivalente à receita tributária total do Estado. Assim, não há como pagar os juros e eles são capitalizados e incluídos no total da dívida.
Mesmo que as taxas atuais de juros reais sofram alguma redução no início do próximo milênio, os juros a serem pagos todo mês -e, como os juros não serão pagos, há aumento mensal da dívida- chegarão ao dobro do que são hoje.
O novo relatório do Banco Mundial, redigido por Bill Dillinger, indica que hoje 27% da receita total do Estado de São Paulo são gastos para compensar os déficits nos planos de aposentadoria dos funcionários públicos estaduais aposentados. Outros 10% da receita do Estado vão para os funcionários aposentados das estatais.
É quase certo que essas proporções vão aumentar à medida que mais funcionários se aposentam após os 30 anos de emprego. E as receitas potenciais advindas da privatização de estatais serão muito menores se essas obrigações forem repassadas aos compradores -como devem ser- juntamente com o patrimônio das estatais.
O ministro Pedro Malan disse recentemente em Washington que os governadores têm a tendência a gastar em salários a íntegra de quaisquer receitas que recebam. O Estado de São Paulo conta com 1,150 milhão de servidores públicos, a maioria dos quais protegidos contra a eliminação de seus cargos pela Constituição.
Em suma, os direitos sobre a receita do Estado representam quase o dobro das receitas -isso antes de descontados os gastos com a manutenção da infra-estrutura existente e da necessária expansão desta nas áreas de saneamento básico, saúde, educação e transportes.
Há perdas que precisam ser alocadas e absorvidas. Não faz sentido o Banespa ou o Banco Central, que detêm a maior parte dos papéis da dívida do Estado, fazerem de conta de que os juros sobre a dívida constituem uma fonte de renda para seu uso, porque esses juros não serão pagos. Assim, as perdas sobre os compromissos financeiros que os bancos incorreram para comprar esses papéis devem ser assumidas o quanto antes, em lugar de deferidas por meio de truques de contabilidade.
Por motivos de prudência e da estabilidade fiscal futura do país, o principal da dívida não pode ser perdoado. Portanto, esse principal precisa parar de crescer já. O reconhecimento de que os juros sobre a dívida do Estado e a do Banespa não estão sendo recebidos pode forçar o BC a reconhecer um valor líquido negativo. Mas o não-reconhecimento apenas nega o reconhecimento, não a própria dívida.
A população de São Paulo precisa assumir parte dessas perdas, de preferência por meio de um aumento nos impostos a pagar. Parece que a receita tributária pode ser aumentada simplesmente melhorando-se os atuais processos de cobrança dos impostos.
Um banqueiro me contou que hoje os empréstimos à indústria brasileira têm de ser feitos sem uma declaração auditorada do devedor, porque ele não concorda em manter uma contabilidade honesta que poderia sujeitá-lo a pagar mais impostos. O BC poderia exigir que todos os devedores submetam declarações financeiras auditoradas antes de receberem empréstimos superiores a uma certa quantia.
O fato de que os ricos não pagam sua parte devida dos custos do governo no Brasil é óbvio demais para ser discutido. Mesmo assim, será preciso sofrer reduções nos serviços públicos, assim como aconteceu em Nova York na década de 70, quando essa cidade chegou perto da falência.
Uma parcela maior dos custos terá de ser absorvida pelos servidores do Estado. As reformas administrativas devem permitir que o Estado reduza sua força de trabalho e exija maior produtividade dos sobreviventes; as reformas das aposentadorias devem exigir que os servidores estaduais trabalhem pelo menos até os 60 anos para terem direito à aposentadoria.
A fórmula pela qual o governo federal aloca dinheiro aos Estados terá de ser modificada para reduzir a desvantagem de São Paulo, que hoje recebe só R$ 0,69 em cada R$ 100 de impostos federais recolhidos no Estado -ou seja, R$ 260 milhões dos R$ 28 bilhões recolhidos pelo Tesouro federal.
À primeira vista pode parecer injusto que Estados muito mais pobres do que São Paulo percam parte de sua receita para socorrer o Estado mais rico do país. Mas São Paulo tem recebido a maior parte da migração interna nacional, reduzindo o custo social da pobreza nos outros Estados e gerando transferências de dinheiro para os parentes dos migrantes que permanecem em seus Estados de origem.
O remédio de reduzir os investimentos públicos, recomendado por várias autoridades, não me parece saudável nem inteligente. Ouvimos falar em graves problemas de fornecimento de água, no sistema de esgotos e na segurança pública.
Não ouvimos nada sobre a educação. Nos disseram que não ouvimos sobre a educação pois os problemas nessa área são tão grandes que é difícil até mesmo começar a discuti-los dentro de nossos limites de tempo. Tais necessidades não podem ser ignoradas sem causar ainda mais prejuízos às perspectivas futuras de São Paulo.
Durante o "milagre econômico" dos anos 60 e 70, quando foi criada boa parte da infra-estrutura do Estado, esquemas de poupança forçada criaram e destinaram impostos que forneceram os insumos financeiros necessários. A inflação que se seguiu às crises do petróleo de 1973 e 1979 destruiu esses acordos, mas alguma coisa do tipo poderia ser restaurada, como fonte de financiamento para a manutenção e ampliação da infra-estrutura.
Hoje as pessoas não querem pagar mais impostos porque acham que seu dinheiro é desperdiçado e imaginam que o dinheiro de novos impostos também seria dissipado.
Mas elas talvez se dispusessem a contribuir para os recursos do Estado se o novo fluxo de renda fosse separado para o financiamento de um projeto específico: uma usina de tratamento de água, construção de escolas etc. Obviamente seria necessário que fosse erguida uma forte estrutura institucional para assegurar que os recursos não fossem parar no orçamento geral do Estado ou destinados ao pagamento de dívidas antigas.

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