São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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SEGREDOS DO INVENTOR

GEORGES SADOUL

Passávamos no momento por uma situação difícil. A fábrica exigira gastos gigantescos e meu pai estava à beira da falência, com um passivo de 275 mil francos. Um velho escrivão nos emprestou os 50 mil francos imprescindíveis para as novas instalações e o prosseguimento das atividades.
As placas "Etiqueta Azul" foram mais que um sucesso: foram um acontecimento histórico. Só no primeiro ano, elas nos renderam cerca de 500 mil francos. Mas meu pai tinha uma concepção bastante peculiar do comércio. Todo dinheiro que recebíamos era gasto imediatamente. Antoine era um homem muito autoritário.
Quando expirou o prazo do contrato firmado entre mim, meu irmão e meu pai, julgamos melhor não renová-lo. Meu pai instalou-se então em La Ciotat, onde dedicou-se à viticultura. Lá continuou a gastar rios de dinheiro...
Tínhamos fundado uma nova sociedade, com capital inicial de três milhões de francos, mas na verdade apenas 100 mil francos estavam subscritos. Não precisávamos de dinheiro, pois os lucros eram mais do que suficientes.
Eu fui o único a cuidar da fábrica, dos procedimentos e das máquinas. Bem mais tarde, como nosso negócio assumira proporções mais amplas, Eastman sugeriu que nos associássemos, a exemplo das grandes casas francesas. Pedimos 25 milhões de francos, mas Eastman nos ofereceu apenas 19 milhões.
O negócio não se realizou e nos juntamos a Jougla. Quando lançamos nosso cinematógrafo, tínhamos cerca de cem operadores. Foi Carpentier quem construiu meu aparelho realizado em 1894. Fiz minhas primeiras projeções no mês de setembro. Nosso mecânico-chefe, Moissou, concebeu e fabricou as furadeiras para a construção do aparelho. Entre os operadores enviados a todo o mundo, posso citar Promio, Mesguich e Doublier.
No início, os operadores eram nossos empregados. Por isso decidimos comercializar nossos aparelhos. Fazer filmes, como então virou moda, não era nosso negócio. Não consigo imaginar-me dentro de um estúdio de filmagem.
Louis Lumière levanta-se. Apanha uma pasta em que se encontram alguns artigos de jornal. Um deles é um artigo que Claude Roy acabara de publicar sobre um livro meu. Nino Frank escreveu que Lumière jamais compreendeu o futuro de sua invenção. Ele se indigna e protesta. Numa pequena brochura de 20 páginas, folheio o primeiro catálogo do cinematógrafo Lumière. Os filmes de que reivindica a paternidade estão sublinhados.
Entre as cenas cômicas, "O Fotógrafo" utiliza um aparelho munido de uma seringa que asperge água em seu cliente. O filme foi realizado em Lyon, e de seu elenco fazia parte Clément Maurice. "Charcutaria Mecânica", realizado com Auguste Lumière em La Ciotat, apresenta um aparelho fantasioso: um porco vivo entra por um lado da máquina e sai por outro na forma de linguiças. Auguste, segundo seu irmão, realizou apenas um filme: "Queimadora de Ervas".
Louis Lumière rodou, sem dúvida, mais filmes do que os sublinhados em seu catálogo. De fato, ao longo da conversa, falamos a respeito de outro filme, "O Sem Pernas", de que também confirma a paternidade. Lumière indicou apenas os filmes com que se sente satisfeito. Ao somar os filmes sublinhados, chegamos a um total de 27. Segundo meus cálculos, sua produção estende-se a mais de 50. Faço notar o excelente enquadramento de seus filmes.
Pessoalmente, desenhei muito e cheguei mesmo a pintar. Meu professor era um certo Morel, que trabalhava no ateliê fotográfico de meu pai. Sempre me preocupou a representação de meus temas. Sou também bastante musical. Frequentei o conservatório de Lyon e recebi o segundo prêmio de piano.
Sadoul - O sr. reparou que os operários em "A Saída da Fábrica" vestem roupas de verão e usam chapéus de palha? O filme foi projetado em fevereiro de 1895, em Paris. O senhor não acha que talvez a versão conhecida atualmente tenha sido realizada durante o verão de 1895?
Lumière - Rodei "A Saída da Fábrica" de uma só vez. Realizei meu primeiro filme depois de ver funcionar um cinetoscópio, mas na única vez que vi este aparelho, não pude examinar seu mecanismo interior. Todos diziam que já era hora de passar às projeções. Foi o que consegui fazer. Se um aparelho dos Irmãos Werner foi comprado nessa época por um Lumière, o mais provável é que tenha sido meu pai. Nunca tive em minhas mãos um cinetoscópio Edison.
Sadoul - Segundo os jornais da época e as publicações americanas sobre a invenção do cinema, os primeiros cinetoscópios desembarcaram na França somente no mês de setembro. Não parece muito provável, portanto, que o filme tenha sido rodado no verão, após a chegada do cinetoscópio.
Lumière - (depois de refletir longamente) - Não consigo me lembrar da data exata. Seria preciso verificar.
A conversa toma novo rumo. Louis Lumière explica-me suas outras invenções, em particular a estereosíntese. Sou conduzido por um corredor de seu laboratório. Atrás de uma placa de vidro fosco, com um relevo alucinante, aparece o presidente Millerand, em tamanho natural. Não lhe falta nem sequer um pêlo do bigode. Mas ao deslocarmos um pouco a cabeça, a imagem torna-se embaçada e indiscernível. Trata-se de fotografias tiradas sobre seis placas de vidro superpostas. Lumière conta-me que nunca explorou comercialmente essa patente. Já se dá por satisfeito em mostrar algumas fotografias de homens célebres nas festas beneficentes de Lyon.
De dentro de algumas caixas, ele retira tecidos e espelhos côncavos recobertos com acetato de prata. É evidente o orgulho que devota a seu laboratório e a suas pequenas invenções.
Por volta das 13h, entramos no elevador que conduz ao terraço, onde a mesa está servida. Lumière segue à frente com suas orelhas enormes, seu nariz aquilino, suas roupas largas. Ele tem algo de um elefante velho. Calça sapatos de Estrasburgo, revestidos de tecido azul-marinho. Sua respiração é ofegante ao sentarmos à mesa. Pede desculpas pela refeição humilde que me oferece, embora ela seja excelente e copiosa. Prova de todos os pratos, bebe sem receio e não recusa o café e o licor.
O peixe frito foi pescado na mesma manhã por seu irmão Auguste, que não almoça conosco. Falamos de Léon Gaumont, morto havia três meses.
Léon Gaumont era um homem encantador. Costumávamos pescar juntos. Charles Pathé já não me agrada. Cruzei com ele duas ou três vezes em minha vida. Não passa de um comerciante.
Falamos em seguida do Festival de Cannes. Louis Lumière não foi convidado, e apesar de sua jovialidade, percebe-se seu ressentimento.
A imprensa declarou que recusei o convite. É mentira. Nunca recebi convite algum e, apesar disso, fui presidente de honra do festival em 1939... É como a placa afixada no boulevard des Capucines em honra a Demeny, Marey e Méliès. Esse último jamais se interessou pelo cinematógrafo antes de vê-lo pessoalmente, em dezembro de 1895. Fiquei surpreso sobretudo pelo fato de a placa estar afixada no próprio edifício que testemunhou as primeiras apresentações de meu aparelho em 1895. Isso não é certo. É como se pusessem a mesma placa na porta de minha casa, em Bandol. Mas fui vingado. Eles foram regados... como o Regador! (1)
Mudamos de assunto. Conto-lhe minha primeira visita a Bandol, durante a ocupação, para visitar meu amigo François Cuzin, fuzilado em julho de 1944 pelos alemães. Foi justamente sob as janelas da casa de campo dos Lumière que tivemos nossa última conversa. Ele me fala da mãe de Cuzin, sua conhecida, e depois voltamos ao Festival de Cannes.
Hoje em dia sou posto de lado. No cinema, afinal de contas, o tempo dos técnicos já passou; agora é a época do teatro.
Falo da mise-en-scène de seus filmes. Ele franze as sobrancelhas. Não consegue compreender o que a mise-en-scène tem a ver com um filme. Do meu ponto de vista, jamais compreendeu. Essa tarefa estava a cargo de Méliès.

NOTA
1. Referência a "L'Arroseur Arrosé" (O Regador Regado), filme de Louis Lumière

Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO

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