São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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A forma elétrica do pensamento

ROGÉRIO SGANZERLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde a primeira projeção pública do Cinematógrafo Lumière (em 28 de dezembro de 1895), no subsolo do Grand Café, que continha pouco mais de cem lugares, os mitos inventam-se a si mesmos e vivem estupendamente de acordo com as suas lendas.
Mesmo quando se procura acreditar que tudo tem uma primeira vez...
Ninguém duvidava da eficácia comercial da projeção de imagens animadas, com exceção do proprietário da sala. Monsieur Volpini preferiu receber 30 francos por dia do que participar com 20% da receita. Não acreditava no negócio. O primeiro dia de exibição de um espetáculo com 20 minutos de duração (sete vistas animadas de 12 a 13 metros) alcançou somente 33 francos de receita. Era pouco, mas o sucesso veio tão rápido que, após três semanas, a bilheteria rendia entre 2.000 e 2.500 francos, sem nenhuma reclamação.
Ao contrário, foi necessário estabelecer um serviço de segurança para impedir conflitos e furões que se acotovelavam na sala de espera, que se enchia e esvaziava a cada meia hora. Chamava atenção a curiosidade do homem da rua, procurando saber o que significava aquele Cinematógrafo Lumière. Os que decidiam entrar, saíam motivados. Pouco a pouco, voltavam, trazendo conhecidos, encontrados ali mesmo no Boulevard des Capucines, em Paris.
O programa permaneceu inalterado durante semanas. Um mês depois, inauguraram a segunda sala de projeções, em Lyon, com o mesmo sucesso de Paris. Ao mesmo tempo, a Sociedade Lumière enviava agentes para diferentes países europeus, a fim de produzir projeções animadas e novas tomadas.
O primeiro país visitado foi a Inglaterra, onde as representações fizeram furor em fevereiro de 1896, com cenas locais do funeral da rainha Vitória, registradas com duas câmeras escondidas.
Com veemência inventiva, Lumière previa: "As aplicações do cinematógrafo se orientam cada vez mais em direção ao teatro; valorizando-se a mise-en-scène, força-nos a abandonar esta exploração para a qual não estávamos preparados".
O silêncio de ouro prometeu felicidade a todos, porém não cumpriu à risca a sua palavra.
Enganador como sempre, o filão misterioso prometia felicidade a todos, porém não cumpriu sua palavra, mesmo com os principais criadores.
A invenção não era uma invencionice, mas uma reconstituição, que, sob o nome de cinema, tornou-se a linguagem do século 20, vale dizer século da imagem, que é rival do livro. O que importa? Sem dúvida, nem um nem outro se excluem, mas se complementam incessantemente.
Observemos o que foi escrito meio século antes, por ocasião da invenção da fotografia: "Qual seria o nosso delírio se pudéssemos ver o progresso da câmera em cem anos, quando não seria tão somente uma parcela da vida captada, mas a própria vida desenvolvendo-se sob os olhos fascinados de nossos descendentes. Nunca quis ser profeta, mas sinto e sei que essas coisas acontecerão. Um entrecho ou um romance mostrado pela câmera aperfeiçoada nos ofereceria uma série de representações da vida, na qual tudo se revelaria claro, definido e, numa palavra, vivo. Esta será então a maior das artes (Champfleury, 1845).
Cinquenta anos depois, o pai da criança repudia a sétima arte em estado fetal: não, o invento (arte sem futuro) não estava à venda. Poderia significar até a ruína para os seus admiradores, prognosticou o seu inventor para alguém interessado em adquirir o equipamento: nada mais nada menos do que mágico Georges Méliès, o inventor do espetáculo cinematográfico, presente à histórica primeira sessão, entre os 33 espectadores, e que num estalo sacou as possibilidades daquela nova arte temporal. E queria comprar... De qualquer maneira, nas suas mãos, a câmera se transformaria em mágica das multidões.
Saindo com as mãos abanando, Méliès teve de se contentar com uma imitação barata, destituída da qualidade fotográfica e da ótica obtida por aqueles fabricantes de emulsões fotográficas.
Não, não estava à venda aquela arte sem futuro, garantiu Lumière, pois poderia significar a ruína para os interessados. (Ainda não havia censores, mas já havia o derrotismo, e Lumière acertou em cheio quanto à futura ruína de Méliès). Quinhentos filmes depois, no início da Primeira Guerra, a profecia se transformava em realidade... Méliès acabou-se juntamente com a Belle Époque.
Derretidos e aproveitados como sucata industrial, os maravilhosos delírios fantasmagóricos de Méliès se transformaram em material de limpeza, especificamente escovões e vassouras. Endividado, teve de fechar o seu estúdio solar, inteiramente de vidro, o primeiro do mundo, e para sobreviver foi trabalhar num quiosque da periferia parisiense, vendendo bugigangas.
Não só a vida imita a arte -com ou sem futuro fácil-, mas também o processo-cinema contém lições de vida, além da vida usual.
Méliès foi o primeiro grande artista a transformar a reprodução do movimento em mágica principal deste século. Uma ilusão centenária merece um balanço crítico, ainda não levantado nem respondido suficientemente, um panorama intrínseco daquela janela mágica sobre um mundo sem limites.
Todos os maus filmes já foram feitos. Faltam os outros, mesmo inacabados.
Hoje o cinema se extingue por fidelidade à tradição, atentando contra o direito de expressão. Através de luz e sombras, é preciso que as pessoas pensem mais na utilidade do veículo. Afinal, quem faz a arte: o criador ou o censor? O gênio ou a besta? O homem da câmera ou da grana?
O que talvez Lumière soubesse, na sua obtusidade despretensiosa, era da total falta de uma política de apoio ao realizador, ao direito de existência de filmes de cinema total e estímulo à mágica de nosso tempo.
Haviam descoberto uma nova forma de anotação gráfica do pensamento, processo elétrico por excelência.

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