São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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missa triste em latim

VADÃO VOLPATO

por Cadão Volpato

"E ele, então, desarmado, só consehuiu perguntar -numa voz lamuriosa que depois cresceu e ganhou altura, virou um grunhido- se ela afinal era sapatão. Ela e a outra mulher perplexas, o coque branco da mais velha desabando"

"Ciao, braziliano!", gritou o travesti ao passar por ele no longo e escuro corredor que dava para a sala de banho. Estava parado debaixo do umbral do seu quarto, dando um último arremate no cabelo com o pente de osso, que guardou rapidamente no bolso. Então colocou a touca negra (trabalho perdido) e desceu devagar a escada sombria, abriu a pesada porta rangedora e ganhou a rua ainda com restos de neve. Tinha conseguido escapar do bongiorno curioso da dona da locanda. Corvo de pele ruim e juba leonina.
Tirou as luvas, fez uma bola de neve e atirou-a nas pedras do Arco, que atravessou com as mãos nos bolsos. Num deles sentiu a tepidez das efígies nas moedas e amassou as últimas liras. No outro estava o caderno de notas enrolado como um papiro, as folhas despregando-se.
Era muito cedo e ela devia estar dormindo. Ela nunca mais ia querer saber dele. Mas ela nunca quis saber dele; então não fazia diferença. Ele apenas buscava relembrar não sem um certo tremor o desastre da noite passada. Coitada. Ele sempre pensava nela como coitada, embora o coitado agora fosse ele. Sempre que pensava nela a palavra se unia às outras. Coitada por não querê-lo mas também coitada por ele querê-la tanto, ele que parecia ter escrito todas as linhas de sua vida pensando nela, por causa dela, por causa do amor que alimentava, paciente, como um pombo (mas ele detestava pombos!) todas as manhãs, tardes e noites deste mundo. Tirou o caderninho e anotou, em pé na calçada. Debatia-se com a imagem dos ciprestes laminares, dos pesados sinos nas campânulas que dobravam dolorosos, apressando o tempo. Daqui a pouco ele estaria voltando para o Brasil. E tudo que ela lhe dera acertara bem no meio dos seus olhos. E ele, então, desarmado, só conseguiu perguntar - numa voz lamuriosa que depois cresceu e ganhou altura, virou um grunhido - se ela afinal era sapatão. Ela e a outra mulher perplexas, o coque branco da mais velha desabando.
Dobram os sinos tétricos e as ruas estão desertas. Talvez devesse, por fim, esfregar os dedos no focinho reluzente do javali, para dar sorte. Caminhou até o mercado. Temia que a sorte já o tivesse abandonado, que o focinho reluzente do javali estivesse encoberto (para economizar sorte), mas lá estava ele, entre os arcos de tijolos centenários do mercado deserto. Agarrou o focinho com as duas mãos e os olhos encheram-se de lágrimas. Era o fim, o javali já não podia fazer mais nada. Ele parecia unir-se, eletrificado, à estátua de bronze. Arfava, o ar quente deixava os pulmões pelas narinas.
Ajoelhada no banco da igreja, a cabeça coberta com um cachecol negro que substituía o véu, ela parecia indiferente à tristeza da missado galo, do latim e do incenso despregando-se dos turíbulos. Tinha as bochechas rosadas de frio e cochilava ao orar. As duas atravessam a ponte de braços dados, depois de terem marchado silenciosamente por entre os círios compridos e luminosos da pequena multidão. Continham caladas, a mais jovem se abaixa para apanhar um pouco de neve. A mais velha pára e ele também, alguns metros atrás, mantendo a mesma distância cautelosa que o separa delas desde o seu primeiro dia na cidade, cão de dono infiel. Ela continuou andando e os duas outras sombras enfim se moveram. De repente, ela se vira e caminha na sua direção. Ele espera, petrificado. Ela atira a bola de neve com fúria, bem no meio dos seus olhos. Fragmentos de uma brancura espectral ainda cintilavam no seu rosto quando ele gritou para ela. E enquanto a mais velha tratava de apressar o passo da outra, que se voltava a cada segundo, derretendo num choro convulsivo e irado, ele gritava todo o resto, que não adiantava nada ela estudar porque ela não tinha alma para o desenho, que o coração dela não era de ninguém, vaca que ele jamais devia ter socorrido do desmaio em São Paulo e levado para a farmácia e passado álcool nos pulsos e tirado os cabelos grudados com suor no rosto (ela que tinha os cabelos tão curtos). E para quem nunca devia ter escrito todas aquelas coisas que estavam ali (no caderninho que jogou contra ela depois recolheu).
E a noite apanhou-o, afinal, no sono mais profundo, e devolveu-lhe o pior dos castigos, o sonho com o teto ridente (de uma abóbora aberta para o céu e as nuvens, pássaros, querubins, moças, um mouro e um pavão miravam-no sorridentes, pois ele dormia ao lado de alguém, as omoplatas pontudas e um respirar sereno, os cabelos curtos, o ar passando suavemente pelos lábios vermelhos - riam porque ele dormia com ela), e ele, o dorso nu, virou para o lado arrastando o cobertor, implorando para nunca mais acordar.

Cadão Volpato é jornalista e escritor, autor do livro "Ronda Noturna", pela Iluminuras

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