São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 1995
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Ilegais são tratados como semi-escravos na Argentina

DENISE CHRISPIM MARIN
DE BUENOS AIRES

Milhares de imigrantes de países da América do Sul, em busca de emprego, driblam diariamente o governo argentino para permanecer no país. Boa parte deles trabalha no mercado informal em regime de semi-escravidão.
A repórter da Folha se apresentou em um dos pontos de recrutamento de trabalhadores ilegais na esquina das avenidas Cobo e Curapaligue, no bairro coreano de Bajo Flores, em Buenos Aires.
Trata-se do local onde dezenas de imigrantes (principalmente bolivianos e peruanos) concentram-se todas as manhãs à espera de um empregador, na maioria dos casos, de origem coreana.
Foi justamente uma coreana quem selecionou a repórter -e mais sete bolivianos- para trabalhar na limpeza do restaurante Oriental, na avenida Cobo 1.702.
A jornada completou-se em oito horas de trabalho e a remuneração foi de US$ 20 -mais lanche de pão com leite e um prato de arroz, dois ovos fritos e salada.
A coreana insistiu para que a repórter trabalhasse como empregada doméstica em sua casa. Teria lugar para dormir, alimentação, descanso aos domingos e salário de US$ 300 mensais.
A jornada no restaurante Oriental verificou-se mais branda que em empresas têxteis. Em geral, o trabalho nas pequenas confecções coreanas começa às 9h e termina à 1h. A remuneração também é de cerca de US$ 20 por dia.
Há duas semanas, três coreanos foram condenados pela Justiça da Argentina por ter submetido dez brasileiros a um regime de semi-escravidão.
Trazidos de Minas Gerais em 93, foram trancafiados na confecção, submetidos a 18 horas diárias de trabalho e a castigos físicos.
O boliviano Carlos Mamañi, 20, confessou à Folha que foi explorado durante um mês em uma confecção de roupas pertencente a um coreano, em Bajo Flores.
O fato ocorreu em 1994. "Eu trabalhava junto com mais seis imigrantes de segunda a sábado, das 8h às 24h", disse.
Mamañi afirmou que foi alojado no local de trabalho, recebeu um prato de comida por dia e salário de US$ 300 no final do mês.
Depois dessa experiência, ainda trabalhou ilegalmente em depósitos de produtos importados da Itália e na construção de edifícios durante um ano.
"O que acontece aqui são casos extremos de exploração do trabalho de imigrantes", afirma o padre Volmar Scaravelli, secretário-geral da Comissão Católica Argentina de Migrações.
Por intermédio de uma agência de empregos, a reportagem da Folha também se fez passar por imigrante ilegal e conseguiu contratação no asilo geriátrico Santa Regina, na rua Martin Rodríguez, 561, bairro de La Boca.
No último dia 14, a repórter se apresentou à proprietária do asilo, Marta Yolanda Cesar. Ela afirmou que a documentação (inexistente) poderia ser conseguida depois.
As condições impostas eram de trabalho das 6h às 20h, com duas refeições, dormitório, salário mensal de US$ 300 e folga de um dia por semana.
"Quando vier a inspeção, você tira o guarda-pó e a toca e pega na mão de um velhinho. Faz de conta que é uma parente na hora da visita", afirmou.
"No caso de inspeção de saúde, nós avisamos e você tem de trocar o uniforme por um mais limpo e colocar a touca.".
O governo argentino está consciente dos mecanismos de exploração do trabalho do imigrante.
"Normalmente, o imigrante ilegal se submete às piores condições de trabalho porque se julga com menos direitos", afirmou à Folha Guillermo Alonso Navone, diretor nacional da Polícia do Trabalho.
Navone interveio pessoalmente em alguns casos e enviou agentes disfarçados à esquina de Cobo e Curapaligue, que chegaram a trabalhar na construção civil.
Ele admite que os imigrantes assumem, na Argentina, funções que os cidadãos locais recusam -como o trabalho doméstico, na construção civil e em confecções.
"O argentino ainda está acostumado a um período de 'festa', ou seja, com proteção social e o maior salário da América Latina."
Entre outubro de 1994 e novembro passado, a Polícia do Trabalho intimou oito empresas do setor têxtil a regularizar a situação de seus funcionários. Dias depois, 26 empresários compareceram.
Paralelamente, a Direção Nacional de Migrações efetuou 1.600 operações de "caça" aos imigrantes ilegais em hotéis e locais de trabalho durante este ano, das quais 250 somente em outubro.
Em 95, foram expulsos da Argentina 3.882 imigrantes ilegais -dos quais 350 brasileiros.
No ano passado, dos 3.155 expulsos, 732 provinham do Brasil, juntamente o principal parceiro da Argentina no Mercosul.
O diretor Direção Nacional de Migrações, Hugo Franco, afirmou que o governo vai se manter firme no controle da imigração ilegal.
"Se um imigrante chega à Argentina como turista com a intenção de buscar trabalho, entra no país de forma ilegal", disse Franco, nomeado para intervir e reorganizar a entidade há 11 meses.
"Não permitiremos a semi-escravidão de imigrantes por gente inescrupulosa", afirmou.

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