São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 1995
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Trombetas da alegria

FRANCISCO GRAZIANO

Festa na Comunidade Boa Vista, em Oriximina, no Pará. Pela primeira vez na história, famílias remanescentes de um quilombo tiveram a titularidade de suas terras reconhecidas pelo governo.
Assinado pelo presidente da República durante a comemoração dos 300 anos de Zumbi, o título de domínio expedido pelo Incra foi recebido pela Comunidade Boa Vista em 24 de novembro último. As margens do rio Trombetas nunca presenciaram tamanha alegria.
Após séculos de perseguição e descaso, os remanescentes de um quilombo, finalmente, começam a ser tratados como cidadãos brasileiros, com direito à propriedade das terras que ocupam e necessitam para reproduzirem sua existência social. Protegidos pela titulação, enfrentarão com galhardia às pressões das mineradoras, dos madeireiros e dos grileiros, que os oprimem seguidamente.
A titulação da Boa Vista é histórica. E agora, aberta a primeira porta, o rumo está dado. Muitas outras comunidades negras semelhantes precisam ter o direito sobre suas terras reconhecido, cumprindo o dispositivo constitucional de 1988. Oxalá em breve todas as áreas remanescentes de quilombos estejam devidamente regularizadas, trazendo tranquilidade a essa população sofrida.
Orgulha-me, como presidente do Incra na época, ter aberto esse novo caminho de cidadania, auxiliando a resgatar parte da dívida acumulada com os povos negros no país. Bastou decisão e certa vontade de mudar as coisas para concretizar um sonho de justiça.
Foi importante mostrar também que a reforma agrária precisa ser entendida de uma forma mais ampla, reconhecendo a diversidade de situações problematizadas que permeiam o campo, procurando soluções próprias seja para os quilombos, seja para os índios, os posseiros e os sem-terra em geral. E sem jamais esquecer da preservação das florestas e da natureza.
Mas o Incra é peixe miúdo nessa história. Os protagonistas principais foram os próprios remanescentes, que se organizaram e lutaram para conquistar seus direitos. Basta dizer que a comunidade, ela própria, fez a demarcação preliminar das suas terras, dando um exemplo de obstinação na sua causa.
Mais ainda, convenceram o governo de que o título teria que ser indiviso, mantendo-se o caráter coletivo que historicamente caracteriza a exploração da área sob seu domínio. Desafiaram, assim, o individualismo da sociedade capitalista.
Auxiliada pela Comissão Pró-Índio, de São Paulo, agora a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximina (ARQMO) baseia-se na jurisprudência da Comunidade Boa Vista para alavancar a titulação das demais 6.500 famílias que compõem essa população negra daquelas paradas longínquas. Mantendo-se o diálogo franco e responsável, essa parceria deverá levar o governo a definir um programa de trabalho visando demarcar e titular todas as áreas remanescentes de quilombos no país.
Essa é a lição maior: a força da sociedade civil é fundamental para mudar o país. Não se constrói um Brasil novo, mais justo e fraterno somente a partir do governo ou das forças tradicionais da política. As organizações não-governamentais (ONGs), principalmente quando se enraízam de verdade no povo, são o fermento das mudanças sociais do mundo contemporâneo. Sem elas não se governa modernamente.

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