São Paulo, terça-feira, 26 de dezembro de 1995
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Ex-presidente da CVM quer mudar mercado

MILTON GAMEZ
DA REPORTAGEM LOCAL

O advogado paulista Ary Oswaldo Mattos Filho, 55, quer mudar a cara do mercado de capitais do país. De novo. Quando presidiu a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), entre março de 1990 e março de 1992, no governo Collor, Mattos Filho alterou o perfil do mercado brasileiro de ações ao regulamentar a entrada do capital estrangeiro. Também permitiu às empresas abertas buscarem dinheiro lá fora, com os ADRs (recibos de ações), o que hoje provoca a ira dos corretores locais.
Professor da Fundação Getúlio Vargas, ele também comprou briga com os empresários brasileiros ao propor o fim de uma distorção do mercado de capitais: o privilégio de se controlar uma empresa aberta com apenas 17% de seu capital, ou seja, detendo 51% das ações ordinárias (com direito a voto), que representam 33% do capital das companhias, em média.
Mattos Filho perdeu essa briga (o projeto foi arquivado) e o cargo, mas continua defendendo a reformulação da Lei das Sociedades Anônimas. A MP (medida provisória) que criou o Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional) mostrou que é hora de se repensar a Lei das S.A. e o papel do Banco Central e da CVM, defende o advogado em entrevista à Folha.
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Folha - A MP do Proer tirou dos acionistas minoritários o direito de recesso, isto é, de vender suas ações pelo valor patrimonial contábil, em caso de fusões e aquisições de bancos. Era um direito assegurado pela Lei das S.A.. Isso foi legítimo?
Ary Oswaldo Mattos Filho - Foi legal, do ponto de vista jurídico. Mas é uma medida casuística. É errado tirar o direito de recesso do acionista minoritário só para uma indústria, a financeira. Devemos repensar a questão como um todo, e não resolver apenas o problema dos bancos.
Folha - O direito de recesso existe em outros países?
Mattos Filho - Não existe nos Estados Unidos, nem na Inglaterra. Nesses países, se os acionistas minoritários estão descontentes com uma fusão, eles vendem suas ações no mercado. Os adversários do direito de recesso dizem que pode haver distorções na apuração do valor patrimonial das empresas, o que torna as ações supervalorizadas.
Folha - Os acionistas minoritários do Banco Nacional perderam com isso, pois a compra pelo Unibanco fez as ações do banco carioca virarem pó. O que eles podem fazer?
Mattos Filho - Nesse caso, não se aplica à MP do Proer, pois não houve fusão nem incorporação. Ocorreu uma alienação de bens do Nacional, como agências, equipamentos, funcionários etc. O banco deixou de existir como instituição financeira. Mas uma das hipóteses do direito de recesso é quando uma empresa muda seu objetivo social. Por aí poderia haver contestação.
Folha - Quer dizer que os minoritários do Nacional poderão rever seu investimento?
Mattos Filho - Não, pois ninguém sabe o valor patrimonial do Nacional, que pode ser zero. Isso o Banco Central ainda não contou. O importante, nessa briga, são as questões que ela levanta.
Folha - Quais questões?
Mattos Filho - O ressarcimento patrimonial dos investidores em ações e o respeito à condição de acionista minoritário. Os acionistas não-controladores do Nacional foram tratados como se não existissem. Se o valor patrimonial do banco ficou inferior ao julgado pelo mercado, em função dos balanços, então alguém deve ser responsabilizado.
Folha - Quem?
Mattos Filho - Os balanços não refletiam a realidade do banco. Talvez os auditores respondam por isso. E os controladores devem ser avaliados no que fizeram ou deixaram de fazer.
Folha - Esse caso não revela a obsolescência da Lei das S.A.?
Mattos Filho - Sim. A lei está obsoleta. Devemos rediscuti-la, acrescentando nesse debate questões como a fiscalização do sistema financeiro e o poder/dever do BC. Primeiro, o BC não pode ser dirigido por critérios políticos. E nem a CVM. Ambos têm culpa.
Folha - Por quê?
Mattos Filho - Se o BC estava negociando com os dois bancos e ambos informaram ao mercado e à imprensa que não havia negociação alguma, aconteceu algo grave.
Houve sonegação de informações não só por parte dos dois bancos como também por parte do BC, que é uma autarquia do governo, assim como a CVM. Ou a CVM sabia que todos estavam mentindo, ou acreditou nas respostas. Nesse caso, não deveria ter mantido a suspensão das ações nas Bolsas por tanto tempo.
Folha - Além do Proer, o que mudou no mercado para justificar a revisão da Lei das S.A.?
Mattos Filho - Essa lei foi extremamente bem escrita, mas para os anos 70, quando era preciso criar mecanismos para capitalizar as grandes empresas. Essa estrutura premia mais o empresário do que o acionista. Agora, é preciso aumentar o direito dos acionistas, pois os investidores estrangeiros gostam de ter garantias.
Folha - Deve-se acabar com as ações preferenciais, sem direito a voto?
Mattos Filho - A proporção poderia ser de 50% para as ordinárias e 50% para as preferenciais. Propus isso quando estive no governo, mas não emplacou.
Hoje, os controladores têm a prerrogativa de contratar e demitir quem os fiscaliza, as auditorias. Isso é uma contradição. Também devem mudar as regras contábeis: os balanços não são transparentes.
Folha - Como as privatizações estão influindo nesse processo de mudança do mercado?
Mattos Filho - Está nascendo um novo modelo societário. Fundos, empregados e empresários estão comprando participações minoritárias, mas todos têm interesse em preservar a liquidez e a rentabilidade das ações de sua empresa.
Por isso as discussões entre os acionistas dessas empresas são absolutamente públicas. É essa transparência que falta nas demais companhias abertas.
Folha - Essa transparência estimula realmente os investidores externos?
Mattos Filho - São os estrangeiros os que mais reclamam da falta de informações das companhias brasileiras.
E, quando estas vão vender suas ações lá fora, com ADRs, elas são obrigadas a seguir as regras de "disclosure (prestação de informações) impostas pela SEC, a CVM americana. O governo brasileiro poderia aplicar essas regras por aqui.

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