São Paulo, quarta-feira, 27 de dezembro de 1995
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Sivam e o Ford Bigode

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Quando o Brasil encasquetou com a energia nuclear e insistiu em firmar com a Alemanha um acordo que contivesse o ciclo completo do combustível, foi achada uma solução maquiavélica. O âmago do processo é, obviamente, o enriquecimento do urânio. Quando o adolescente impetuoso se encanta com aquela motocicleta Kamikase de 500 cilindradas, o melhor que o pai experiente pode fazer é dar-lhe um sonolento Fusca. Melhor ainda se o playboy aceitar um clássico Ford Bigode.
A Alemanha dispunha e usava a eficiente tecnologia das ultracentrífugas para enriquecimento do urânio. Foi entretanto invocado um acordo com a Holanda e a Inglaterra, co-proprietárias da dita tecnologia. Ninguém duvida que tenha sido uma interferência americana.
E o Brasil, como o adolescente enrolado pelo pai, aceitou a alternativa do jato centrífugo, tecnologia engavetada então há mais de vinte anos e, por natureza, ineficiente. Ou seja, engabelado, o adolescente aceitou um Ford Bigode que nunca tinha sido montado.
Bem, até hoje não enriquecemos uma grama sequer de urânio com o jato centrífugo, mas várias toneladas já foram produzidas com as ultracentrífugas que anos depois a Marinha brasileira, sem qualquer auxílio externo, projetou e construiu. Mas quase deu certo a artimanha. Se tivéssemos continuado com o jato centrífugo não teríamos até hoje enriquecido urânio. A melhor maneira de abortar um programa é adotar um projeto inadequado que consuma os esforços do interessado.
Pois bem, estamos para cair novamente na cilada do Ford Bigode. Queremos porque queremos um sistema de vigilância da Amazônia. Em 1993 um relatório da Aeronáutica teria chegado à conclusão de que uma revolução conceitual já estava acontecendo no cenário internacional. (Vejam, por exemplo, Bernard Blake, "International Defense Review", 10/91).
Um sistema de vigilância da Amazônia e, por extensão, do resto do Brasil deveria incluir uma tecnologia bastante antiga, mas que, refinada recentemente. permitiria verdadeiros milagres, dispensando inclusive os radares 3D móveis de superfície e os aerotransportados.
Esta tecnologia, denominada OTH ("Over the Horizon"), tem uma vantagem excepcional. Ela não apresenta as deficiências dos radares de terra e aerotransportados quanto ao alcance. Além do mais, não apresenta o problema de sombras como os demais radares. Todavia essa mesma característica implica em sua única desvantagem, que é uma relativa falta de precisão. É limitada a 30 Mz devido à transparência da ionosfera a frequências superiores, não enxergando objetos menores que dez metros. Necessita talvez ser complementada por alguns radares de terra. Mas é a tecnologia ideal para regiões inóspitas como a Amazônia pois, em princípio, bastaria uma base de operação.
O Brasil, em consequência deste estudo, solicitou aos EUA permissão para que a tecnologia OTH fosse incorporada ao Sivam. Além da Raytheon, a General Electric e a Westinghouse também dispõem desta tecnologia. Mas os EUA negaram o pedido. E surge a primeira pergunta indiscreta: porque será que o Brasil não recorreu a outros países que dispõem desta tecnologia? Inglaterra, Rússia, Alemanha, por exemplo?
Uma das finalidades do OTH americano instalado em Porto Rico é informar sobre campos de pouso e movimento de aeronaves na Colômbia, Venezuela e Bolívia por causa do narcotráfico e guerrilhas. Ora, um OTH instalado na Amazônia permitiria que o Brasil estendesse sua vigilância até o sul dos EUA, além, obviamente, de toda a América Central e do Sul. O sistema OTH também permitiria vigilância bastante além das costas brasileiras.
Cerca de quatro mil quilômetros já são alcançáveis pelo sistema Jindalce na Austrália, com uma resolução espacial de vinte a quarenta quilômetros.
Sistemas OTH são também eficientes, tanto para detecção precoce de mísseis balísticos estratégicos e táticos, como para aviões voando a pequenas alturas. Além do mais, são fundamentais para detectar movimentos sobre a superfície, seja em terra ou no mar.
Então está tudo explicado. Esta tecnologia implica em excessivo poder para uma republiqueta de banana. E os domesticados daqui do Brasil estão dispostos a pagar mais caro por uma tecnologia obsoleta e que ainda por cima dá ao grande patrão acesso prioritário às informações. E vão ficar contentes com o Ford Bigode.
Em contraste com a decisão do domesticado gigante adormecido, a Austrália decidiu, há pouco mais de 20 anos, desenvolver e implantar um sistema OTH para vigiar principalmente a costa australiana norte e seus mares adjacentes. Esta é uma região deserta como a Amazônia. É um consórcio liderado pela Telecom Austrália e tem como parceiro principal a GEC-Marconi da Inglaterra com excelentes resultados. Será que canguru é mais inteligente que macaquito? Por que não podemos seguir o exemplo australiano ao menos?
Não será preciso ir tão longe quanto pretendem alguns técnicos de todo mundo, inclusive do Ministério da Aeronáutica, e dispensar de imediato as técnicas convencionais de tardar, sucateando os quase cem radares que já temos instalados nos Sindactas 1, 2, e 3 e na Amazônia. Mas podemos pensar em uma transição tecnológica, tendo a engenharia e a indústria brasileiras como plataforma.
Certamente a adoção de um sistema OTH na Amazônia seria um primeiro passo para sua adoção em todo o território nacional. Ele dispensaria justamente os radares mais dispendiosos, como os 3D e os embarcados contidos no atual projeto, mas seria complementado por alguns de superfície. Esta modernização tecnológica, proposta inicialmente pelo próprio Ministério da Aeronáutica, é tão óbvia e seu engavetamento só pode ser compreendido como mais uma concessão da colônia ao poder central.
Eis porque o vice-rei americano no Brasil, eufemisticamente denominado "embaixador", está tão indignado com a rebeldia do Senado brasileiro. Afinal, tudo bem que o Brasil dê uma espiadela ingênua e compartilhada sobre a Amazônia, mas nenhum centímetro além de suas fronteiras. E que história é essa de querer decidir sobre seu próprio sistema de segurança?
O Sivam, como está concebido, responde fundamentalmente aos interesses americanos. Não são apenas vinte mil empregos de base tecnológica nos EUA, ou a pesquisa subsidiada pelo Brasil, ou a transferência para o Brasil dos custos de uma vigilância adicional, embora limitada. Mas o principal é que ocupa o espaço de um eventual sistema que realmente possa significar ao país alguma segurança territorial.

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