São Paulo, quinta-feira, 28 de dezembro de 1995
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Compositor traça painel secreto da Rússia

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um retrato musical de Stálin? A capa do CD de Dimitri Shostakovich já define o terror e as ironias da Sinfonia nº 10. Escrita em 1953, meses depois da morte do ditador, a Sinfonia é um dos pontos altos na trajetória integral das 15 escritas pelo compositor russo.
Assim como os 15 quartetos de cordas formam uma espécie de autobiografia íntima, as sinfonias são quase uma história secreta da Rússia no nosso século.
As relações entre Shostakovich e Stálin vinham de longe e não eram exatamente cordiais. Num famoso artigo publicado no jornal "Pravda", em 1934, com o título "Caos em vez de música", Stálin acusara o jovem Shostakovich de individualismo extremado e audácia temática e avisara que "isto ainda podia acabar mal".
O compositor, no ostracismo, pagou sua pena escrevendo a Quinta Sinfonia, intitulada "Resposta de um artista soviético a uma crítica justa". No final do último movimento, um motivo de três lás agudos é abafado 252 vezes pela orquestra; mas a alegoria podia ser e foi mesmo interpretada como um triunfo do "pequeno pai dos povos".
A partir deste ponto, a música sinfônica de Shostakovich assume um caráter cifrado. Sua linguagem, dada ao sarcasmo e à melancolia, faz da duplicidade uma condição de sobrevivência.
Estranho como pode soar política uma música aparentemente abstrata. Festejado e renegado até sua morte em 1975, Shostakovich fez da sinfonia um palco sonoro para a dupla história de um homem no mundo dos homens.
Não há uma explicação clara para o aparecimento das iniciais do compositor na Sinfonia nº 10 (no sistema alemão, as letras D. SCH, correspondem a ré, mi bemol, dó, si).
Mas pode-se imaginar o quanto representava para Shostakovich, em 1953, a chance de assinar seu nome, por assim dizer, sobre o rosto morto de Stálin.
A gravação da London Philharmonic, sob a regência de Andrew Litton, integra uma esplêndida série, "Ultraviolet", da Virgin Classics, lançada há um ano na Europa. A EMI traz ao Brasil, agora, alguns volumes.
Além de Shostakovich, traz também "The Age of Anxiety" de Bernstein; a Sinfonia nº 29, de Mozart; a Quarta de Mendelssohn (junto com "Sonho de Cuja Noite de Verão"); uma antologia de música francesa do século 20 para oboé e a "Serenata" para tenor, trompa e cordas de Britten, acompanhada de uma gravação rara de seu drama bíblico, "Noye's Fludde". Produzida na Inglaterra, a série privilegia quase exclusivamente os músicos ingleses.
No universo tão bem comportado e repetitivo da indústria da música clássica, a série chama a atenção, em primeiro lugar, pela escolha do repertório.
Recupera grandes obras do século 20, numa linha avessa às vanguardas, mas nem por isto menos interessante.
Chama atenção, ainda, pelas capas do designer Nick Bell. Usando fotografias, a maioria em preto e branco, as capas dizem mais sobre a música do que os encartes -para quem for capaz de distinguir as ressonâncias e as dissonâncias entre imagem e composição.

Disco: Sinfonia nº 10, de Dimitri Shostakovich
Gravadora: Virgin Classics

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