São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 1995
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Visão dos fatos

JANIO DE FREITAS

Os fatos mais salientes não são, necessariamente, os mais marcantes do período em que ocorreram. Ao grampo, à pasta rosa, ao Sivam sobrepõem-se outros traços mais caracterizadores, embora menos públicos, do ano inicial do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Haverá, com maioria amplíssima no empresariado, quem considere que os fatos mais marcantes de 95 foram as emendas constitucionais e a inflação baixa. Pode-se contra-argumentar que as emendas, sobre estarem previstas na própria Constituição, já vinham cumprindo, antes deste governo, um processo de maturação que acabaria fatalmente por efetivá-las. E o elo entre o Plano Real e a queda da inflação não elimina a verdade de que ambos datam do governo de Itamar Franco, por menos que as iras pessoais do jornalismo econômico o reconheçam. O atual governo deu a previsível continuidade ao bom e ao ruim do plano: a inflação baixa e certa estabilidade de muitos preços, de uma parte, e os juros estratosféricos e as perdas salariais, de outra.
O desdobramento da contra-argumentação leva, é claro, a outros pontos mais marcantes. O primeiro dos quais é o próprio Fernando Henrique, em pessoa. Tão saudado como presidente-intelectual, assim se fez portador da promessa de presença, no poder, de uma inteligência inalcançável pelos presidentes comuns. A consequência lógica da condição de intelectual seria que elevasse as questões ao nível das idéias, instituísse o debate extinto desde 64. Em resumo, sofisticasse e forçasse a sofisticação das divergências, dando ao que nelas é político ou administrativo a dimensão, ausente entre nós, da inteligência e cultura que lhes são indispensáveis.
Ao invés disso, Fernando Henrique demonstrou impulso incontível para a superficialidade. Banalizou sempre e tudo. As questões todas, sem exceção, tiveram o tratamento reduzido, em sua ótica, à oposição de burros e inteligentes, fórmula que, no mínimo, estabelece a dúvida sobre o lado em que está a inteligência; atrasados e modernos; fracassomaníacos e patriotas; corvos e incriticáveis; criados pela ditadura e adversários (no Chile?) da ditadura (aqui). O que era raso foi rebaixado ao chão mais árido.
Outro fato caracterizante do ano foi o desaparecimento do PT e de Lula, como se perdidos atrás dos cenários do palco político. O partido e seu líder parecem ter abdicado, não só das aspirações que os criaram, mas de qualquer propósito participante na vida nacional. Os efeitos dessa ausência manifestam-se com mais evidência na falta de oposição em âmbito propriamente político. Não se reduzem a isso, porém, estendendo-se a setores sociais hoje perdidos em sua amplitude e no sentimento de impotência irremediável -caminho direto para o conformismo amargurado.
Já a luta dos deserdados do campo seguiu outro rumo. Deixou de ser episódica, deixou de ser localizada em pontos sem conexão uns com os outros. O movimento dos sem-terra tornou-se movimento mesmo, institucionalizou-se, está assumindo a consciência e a forma de força política, com perspectivas de presença importante já no futuro próximo. E com o vasto potencial de apoio urbano legado pela retirada do PT e pela modéstia do papel que a CUT passou a se atribuir. Já não basta ao governo, embora ele ainda não o tenha notado, inventar no papel 42 mil assentamentos incomprováveis.

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