São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 1995
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'Diário' expõe o Getúlio Vargas inapetente

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A noto algumas impressões sobre o "Diário de Getúlio Vargas", recém-publicado pela Siciliano/FGV. São dois volumes, cerca de 600 páginas cada um. Trata-se, claro, de um acontecimento editorial. Não sei se houve algum presidente da República que se tenha dado ao trabalho de registrar, dia a dia, suas atividades. E, tratando-se de Getúlio, as coisas ficam ainda mais interessantes.
Só que, numa primeira olhada, fiquei algo decepcionado. As minúcias da política ocupam o primeiro plano. Para o especialista, não duvido de que seja um documento preciosíssimo. Para o leitor comum, o efeito é outro. Frequentemente, topamos com passagens como esta: "Virgílio retraiu-se. Há dois dias que não o vejo. O governo mineiro reorganizou-se à minha revelia. Também à dele... Que haverá? O general Ptolomeu avisa que Elisiário Paim estava comprometido na conspiração de Passos Maia".
Confesso que fiquei boiando. Nomes e mais nomes aparecem como espectros; conspirações e boatos se dissolvem e revivem da noite para o dia. As apressadas notas a lápis, escondidas em cadernetas de capa dura por mais de quatro décadas, apagam-se quando lidas; tudo parece irreal, fugaz.
Passada essa primeira impressão, comecei a pensar um pouco mais sobre o livro, e a entender, espero, o que tem de fascinante mesmo para quem não é historiador profissional.
Temos de Getúlio Vargas uma imagem tripla: primeiro, a do político astuto, dissimulado, reticente ("deixa como está para ver como é que fica"). Também a do ditador frio, autoritário, que só não foi um completo fascista por excesso de frieza. E, por último, a figura do estadista, do homem que construiu o Brasil moderno, industrial, de massas.
Certamente, é a última imagem a que prevalece, uma vez que tingida de sentido sociológico e histórico: das leis trabalhistas da década de 30 à Petrobrás nos anos 50, Getúlio tem uma obra incomparável neste século.
E o que espanta o leitor desses diários é que, em nenhum momento, Getúlio parece estar entusiasmado com o que está fazendo. Mal se refere ao que de concreto, de histórico, foi capaz de criar. A Revolução de 30 perde, nessas páginas, o significado costumeiro. Os diários não mostram um idealista, um reformador, um estadista. São antes o relatório de uma rotina governamental, turbulenta à vezes, mas de modo algum imbuída de grandeza.
Há lago de errado aí, pensa o leitor. Mas não, não há nada de errado. O livro nos mostra o outro lado do exercício do poder. Por mais grandioso que seja o "projeto" de um governante, a prática dos negócios de Estado tende sempre a ser diminuta.
Serve como exemplo o livro de André Malraux, "A Vida de Napoleão por Ele Mesmo", também editado pela Siciliano. Napoleão estava mais preocupado com a forragem para a cavalaria na divisão tal da batalha tal, do que com grandes idéias, com o sentido histórico de sua personalidade.
Talvez a grandeza, para os grandes homens, seja uma obviedade. O que os preocupa é a traiçãozinha de um auxiliar, ou a falta de apoio numa província isolada, ou uma futrica.
Nos diários de Getúlio, é como se seu projeto histórico fosse um assunto menor, tema para discursos, para historiadores, para intelectuais. Não dedica uma linha sequer ao que pretende fazer do Brasil. O importante, acima de tudo, é ficar no poder.
Tivessem esses homens a vocação reformadora, histórica, ideológica que lhes atribuímos, eles seriam escritores, historiadores, intelectuais. Eram homens de ação, e os textos de Getúlio Vargas são equivalentes aos diários de campanha de um general.
Só que Vargas era um general muito peculiar. Lembra mais Kutusoff, o general russo da resistência a Napoleão, personagem do "Guerra e Paz" de Tolstói, do que o próprio Napoleão. Kutusoff era um general sem estratégia. Confiava no passar do tempo, na chegada do inverno, em manobras obscuras, mais do que num ataque heróico às tropas de Napoleão.
Talvez isto explique um efeito curioso dos diários de Getúlio. A anotação burocrática dos fatos oculta tudo o que pudesse haver de atividade intelectual em seu governo. O tom do livro inteiro é fascinante, pelo que tem de distanciamento, de falta de vivacidade, de quase preguiça no que está sendo contado.
O suicida que havia em Getúlio fora previsto, senão me engano, por Gilberto Freyre já na década de 40. Em alguns momentos do diário ele flerta com a própria morte. Sabe-se que sua carta final já havia sido preparada de antemão. Mais do que pensar na morte e no sacrifício, Getúlio revela às vezes o enfado: "Apesar do coro de louvores, começo a duvidar de mim, a pensar que o melhor seria recolher-me a um retiro silencioso para descansar".
Ele escreve isso em 1933, 12 anos antes de sair do governo, e 21 anos antes do suicídio. Claro que todo presidente tem esse tipo de sensações. Mesmo Hitler e Stálin devem ter conhecido alguns momentos de melancolia.
Mas o tom dos diários de Getúlio é invariável, não revela oscilações de humor. Uma palavra serve para resumi-lo: o da inapetência. Há uma total falta de entusiasmo. Falta de vaidade também.
Esta última circunstância -falta de vaidade- é rara em quem escreve assiduamente o próprio diário. Normalmente, ou a pessoa escreve um diário para si mesma -querendo lê-lo depois- ou escreve um diário para a "posteridade", embelezando-se a si mesma, denegrindo seus adversários etc.
O mais interessante em Getúlio Vargas é que seus diários não fazem nem uma coisa nem outra. A quem se dirigem? Não a ele mesmo; tampouco às gerações futuras.
Veja-se este trecho: "Passei a noite com insônia. Com frequência, vieram-me ao pensamento as ameaças de um antigo amigo, hoje rancoroso e despeitado inimigo, prometendo escrever um livro contra mim, divulgando correspondência secreta. Trata-se de um caso de chantagem".
A quem se dirige esta anotação? Fosse apenas um diário pessoal, Vargas teria escrito: "As ameaças de Fulano me fizeram perder o sono. Fosse um livro para a história, o autor teria entrado em mais detalhes sobre quem era Fulano etc. Getúlio foi ao mesmo tempo explícito e misterioso.
Outro exemplo. No primeiro de janeiro de 1936, Vargas escreve: "Este caderno não é a descrição do que fiz como governo. Isso se encontra nos documentos oficiais. É uma anotação pessoal, feita no dia seguinte, do que se passou no anterior, ou antes, daquilo que minha memória reteve. Eis por que não se encontrará aqui nenhum balanço dos trabalhos do ano. Não há aqui nem espaço nem tempo para fazê-lo." Minha pergunta, de novo, é a seguinte: para quem ele está escrevendo? Fosse para a posteridade, seria de seu interesse dizer o que fez, quais suas vitórias. Fosse para si mesmo, não precisaria dar explicações.
Tenho a impressão de que seu diário funciona como uma espécie de satisfação para o superego. Getúlio não está conversando consigo mesmo, nem projetando sua imagem para os futuros leitores. Está dando conta de suas atividades como um funcionário burocrático tem de prestar o relatório de seus serviços ao chefe. Mas quem era o chefe de Getúlio Vargas? A quem, afinal, ele estava satisfazendo com a declaração das audiências que fez?
Minha resposta é um pouco romântica. Acho que ele estava prestando contas, não a si mesmo, mas ao mito que, sabia, ele iria ser. Lemos o texto de um homem banal, desinteressante e desinteressado de tudo, empenhado em satisfazer, como num relatório tedioso, às expectativas de um chefe exigente. Mas esse chefe era ele mesmo, o Getúlio estadista que conhecemos.
Numa conclusão um tanto otimista, e emersoniana, digo o seguinte: cada homem é o chefe de si mesmo. Cada homem é servo de seu mito. O segredo de toda grandeza está em obedecer às ordens desse chefe. Trata-se do dever mais pesado, mais egoísta, mais difícil que existe. A recompensa, cumpre avisar, é das mais duvidosas.

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