São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 1995
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Uma chance de recuperação

ELISALDO L.A. CARLINI

Inicialmente é necessário precisar exatamente o que entendo por descriminar. Não se trata aqui de uma decisão em relação a um objeto, como uma droga ou, em particular, a maconha; isso porque não se pode criminalizar, tornar passível de pena, coisas inanimadas. O ato de criminalizar e, em consequência, de descriminar refere-se, portanto, a condutas ou comportamentos humanos.
Exemplificando: se alguém atira um tijolo em desafeto, ferindo-o, não será o tijolo a ser punido ou criminalizado, mas sim o ato humano da agressão, utilizando o tijolo como instrumento.
Assim, quando discutimos a descriminação, entendo que está em foco a conduta humana de usar drogas. E diante desse entendimento será agora pertinente analisar qual é a finalidade de uma lei que pune a conduta discutida. O que a sociedade pretende com ela? Vingar-se pura e simplesmente daqueles que transgridem seus ditames, marginalizando-os? Ou, ao contrário, a sociedade deseja que aqueles que usam drogas possam ser recuperados?
Na minha opinião, a segunda possibilidade deve ser sempre a preferida. Em sendo assim, julgo que a atual lei que pune até com prisão o usuário de droga é uma violência, e a descriminação seria um ato de antiviolência.
A descriminação viria também diminuir duas outras circunstâncias que me afiguram como de muita violência: o desesperado esforço de pais que procuram a todo custo aliviar seus filhos(as) das penas por terem experimentado uma droga, utilizando para isso de recursos inaceitáveis, expondo seus rebentos à lamentável evidência de que processos ilegais às vezes funcionam; e o constrangimento de cidadãos dependentes químicos que, ao procurarem tratamento, estarão ao mesmo tempo denunciando-se como transgressores da lei.
Acredito que a descriminação do uso de uma droga somente seria útil do ponto de vista de saúde pública caso fosse acompanhada de amplo esclarecimento sobre os inconvenientes e malefícios do uso. Pois ser favorável à descriminação não significa ser favorável ao uso. Sempre fui profundamente contra, até porque não acredito em escapismos fáceis à angustiante realidade do homem, consciente de que sua imortal essência habita um corpo frágil e perecível.
Cabe ainda considerar como deverá o Estado lidar com as drogas. Conforme já dito, elas não podem ser descriminadas. No caso específico da maconha, ela deverá continuar sendo proscrita. Não cabe, na minha opinião, legalizá-la, pois isso implicaria que o Estado consideraria o seu uso inócuo ou com benefícios à saúde superiores aos riscos.
Mas já existem evidências científicas e clínicas de que uma substância (THC ou dronabinol) extraída dessa planta tem efeitos terapêuticos úteis para casos de náusea causados pela quimioterapia do câncer e para melhorar o estado de saúde, aumentando o apetite, de doentes terminais de Aids. Pode ser que tenhamos no futuro próximo uma situação semelhante à da papoula do Oriente: essa planta é proscrita, mas uma das substâncias, a morfina, é reconhecida como medicamento, sendo sua utilização permitida, mas severamente controlada.

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