São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 1995
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O renascimento da teoria de Gaia

James Lovelock defende que Terra e vida formam sistema único

HELIO GUROVITZ
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Para muitos, ele ainda é um pária. Suas idéias não fazem sentido. São religião, não ciência.
O britânico James Lovelock propôs na década de 70 a noção de que a Terra não poderia ser separada da vida. Ousou considerar o planeta um superorganismo vivo, que se equilibrava sozinho sempre que perturbado. Para completar, batizou esse organismo com o nome de uma deusa grega: Gaia.
Foi a ira dos cientistas e a glória dos místicos. De respeitado cientista, Lovelock passou a ser visto como louco, herético ou profeta.
Defensores do rigor científico acusavam Gaia de trazer intencionalidade a algo que não tem consciência: o planeta Terra. Como poderia a Terra -sozinha- restaurar seu equilíbrio físico e químico quando perturbada? Como seres vivos em eterna competição pela sobrevivência poderiam gerar um ambiente harmônico em Gaia?
A origem da idéia estava nos dois anos que Lovelock passou na Nasa (EUA). Ele concluiu que as características da atmosfera de Marte bastam para dizer que lá não há vida. Seria, portanto, inútil enviar uma expedição ao planeta.
Sofreu forte oposição, mas ajudou a montar os aparelhos que estão até hoje, a bordo da Viking, em solo marciano. Vida em Marte, ninguém ainda achou.
Em 1977, mudou-se para a propriedade rural de Coombe Mill, em St. Giles on the Heath (sudoeste). Na década de 80, modelos matemáticos começaram a sugerir que algumas noções trazidas de Gaia talvez tivessem sentido.
Com o aumento da capacidade dos computadores, tornou-se possível calcular a interação de centenas de espécies, substâncias químicas e variáveis físicas.
Para espanto dos pesquisadores, propriedades de equilíbrio e auto-regulação surgiram naturalmente, sem que houvessem sido programadas (são as chamadas propriedades emergentes). Não eram intencionais, mas eram reais.
Um dos mais respeitados biólogos britânicos, John Maynard Smith, passou a ver um tópico científico válido no que antes considerava uma religião do mau.
Aos 76 anos, pai de quatro filhos e avô de nove netos, Lovelock concedeu por telefone à Folha a entrevista a seguir.

Folha - Como o sr. define Gaia?
James Lovelock - Não é simples. A hipótese Gaia surgiu por volta de 1971 e supunha que a Terra regula seu clima e sua química de um modo que seja confortável para si mesma, e que os pulmões eram responsáveis por isso.
Folha - Como?
Lovelock - Essa era uma visão incorreta. Aquilo de que falamos hoje é a teoria de Gaia, que é uma teoria evolutiva, que pensa a evolução dos organismos vivos do mesmo modo como Darwin fazia.
Mas a evolução das rochas, do ar e dos oceanos não fica separada disso. Os processos evolutivos são acoplados. Na teoria, formulada matematicamente, a auto-regulação de clima e oceanos é o que chamamos propriedade emergente. A teoria é aceitável. Mas a hipótese original estava errada. Pulmões não regulam mesmo nada.
Folha - Qual era o erro original da hipótese Gaia?
Lovelock - Só havia um modo de os organismos regularem a química. Era o que a hipótese sugeria. Mas agora nós acreditamos que é o sistema formado pelos organismos vivos e pela Terra que se regula.
Podemos pensar na Terra como num ninho de cupins. É feito da parte material com que os cupins constroem o ninho, mais os próprios cupins que vivem dentro. Tudo junto é capaz de se regular sozinho. O ninho de cupins é um sistema bem equilibrado.
Assim como nós. Se você estender essa idéia para todo o planeta, vai entender. Não é que os cupins regulem sozinhos a temperatura do ninho, mas os cupins e o ninho formam juntos um sistema que regula sua temperatura sozinho.
Folha - Por que a comunidade se enfureceu e se dividiu contra ou a favor de Gaia?
Lovelock - A maioria foi contra (risos). Só um pequeno grupo nos levou a sério. Um grande biólogo britânico, John Maynard Smith, considera agora que a teoria de Gaia é um tópico científico válido. Há apenas três anos, ele se referia a ela como uma religião do mau.
Folha - Recentemente uma série de trabalhos parecem dar força à teoria de Gaia. O sr. poderia mencionar os principais?
Lovelock - Não muito longe de você, em São José dos Campos, houve uma reunião na década de 80 sobre geofisiologia da Amazônia. Discutiu-se uma visão similar a Gaia do mundo e da Amazônia.
As conclusões foram publicadas num livro intitulado "A Geofisiologia da Amazônia". Vejo esse livro como uma espécie de ponto inicial, quando cientistas se reuniram para discutir Gaia a sério.
Pessoas que fazem modelos em centros climáticos começaram a incluir a biosfera em seus modelos. Quando fazem isso, a não ser que o façam de acordo com Gaia, os modelos não funcionam, ficam instáveis e caóticos. Quando o fazem de acordo com Gaia, obtêm previsões interessantes.
Recentemente tivemos um resultado de um centro no Wisconsin (EUA) de que florestas boreais escuras da Sibéria e do Canadá agem de modo a aumentar o aquecimento do planeta.
Folha - O sr. poderia explicar isso em mais detalhes?
Lovelock - Sim. As florestas escuras crescem em regiões perto do pólo Norte. Se você olhar o formato das árvores, elas são altas, escuras e encobrem a neve. Vistas do espaço, as florestas são todas escuras. Isso muda o lugar, de modo que toda a região é aquecida muito mais na presença da floresta.
Várias outras evidências têm surgido. Ainda acho que a melhor prova para Gaia vem da comparação da Terra com Marte e Vênus.
Nossa atmosfera e nosso clima são consequências da vida. Se a vida fosse removida da Terra, as mudanças levariam o planeta a ser algo entre Marte e Vênus. Seco, quente e com gás carbônico como o principal gás atmosférico.
Folha - Em 1994, o sr. publicou na revista "Nature". Há quanto tempo o sr. não publicava em revistas tradicionais?
Lovelock - Seria incorreto dizer que fui banido (risos). Sou membro da Sociedade Real. Fui eleito presidente da Sociedade de Biologia Marinha. Também sou um membro visitante em Oxford. Não estou perdido ou vivendo numa selva. Para cientistas americanos, talvez, porque certa vez disse que era absurdo falar em vida em Marte. Mas essa é uma razão política.
Folha - O sr. acha que cientistas tentam evitar a teoria de Gaia como algo que pode ter implicações religiosas?
Lovelock - Você está provavelmente certo. O interesse em Gaia por parte de grupos religiosos tem muitas desvantagens.
Posso compreender a intenção deles, mas isso repele cientistas que possam estar interessados. Como não tenho direitos sobre o nome Gaia, uma vez que introduzi a idéia, ela está em domínio público. No século passado, Darwin também passou por dificuldades com o termo darwinismo social.
Folha - O sr. crê em Deus?
Lovelock - Nunca acreditei em Deus, mas não sou um ateu. Acredito que vivemos não só num lugar estranho, mas muito mais estranho do que jamais poderemos imaginar (risos).
Folha - No último congresso internacional sobre o clima em Viena, chegou-se à conclusão de que o ser humano é responsável pelo aquecimento global. Como conciliar o equilíbrio de Gaia com esses seres "inteligentes"?
Lovelock - É preciso lembrar que esse modelo tem 3,5 bilhões de anos. O homem viveu nele por um tempo muito curto.
É um sistema notavelmente estável. Chegamos muito tarde e representamos uma perturbação. Mas principalmente para nós mesmos, não tanto para o sistema.
Escolhemos alterar a atmosfera quando o sistema está num estado doente. Foi sobre isso que escrevi na "Nature". Achamos que a glaciação é o estado saudável de Gaia e períodos intermediários são um tipo de febre. É a hora errada para liberar gases do efeito estufa.
É como se eu ou você tivéssemos febre e colocassem lâmpadas quentes perto, de modo que a febre aumentasse. Não é sensato.

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