São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 1995
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A MALDIÇÃO DO FARAÓ

GIUSEPPE PONTIGGIA
ESPECIAL PARA "CORRIERE DELLA SERA"

"Há algo de podre no Egito", disse Vitali, tirando o capacete colonial e enxugando a careca com um lenço de seda.
Uma meia-lua irreal irradiava uma luz diáfana sobre uma multidão de sombras que rodeavam o sítio das escavações sob os olhos atentos da polícia. Além da pirâmide, na superfície ondeante do deserto, a ambulância afastava-se rapidamente numa sutil linha reta.
"Pobre Belzoni", disse Ramsey, enchendo o copo de papel de cerveja escura, na claridade da tenda erguida sobre o terrapleno. "É sua última viagem."
"Isto é o que você pensa", disse Vitali, colocando o capacete numa cadeira próxima. "Talvez seja a primeira de uma nova série."
"É mesmo", concordou Ramsey. "Soube que o senhor, depois da insolação e do infarto, se considera beneficiado por um milagre de Ra, o deus sol, e converteu-se à religião egípcia. Mas o pobre Belzoni não irá longe."
Vitali refletiu:
"Eu me pergunto por que a vítima foi justamente ele."
"Mas é evidente", disse Ramsey.
Vitali olhou-o serenamente:
"O que há de evidente num mistério?"
"Que o mistério não existe! Não acredito em mistérios. Trata-se simplesmente de uma pergunta incorreta, de um problema mal colocado, um déficit de informações. O senhor sabe, por exemplo, de quem descendia o pobre Belzoni?"
"Do famoso arqueólogo, suponho!"
"Sim, mas não era um arqueólogo, era um especialista em hidráulica. Um homem aventureiro. Imagine que, em 1803, com 25 anos de idade, exibiu-se em público em Londres, no teatro Sadler's Well, com o pseudônimo de Sansão da Patagônia."
"Era um gigante como o nosso pobre amigo?"
"Maior que ele!", respondeu Ramsey, satisfeito. "Tinha 1,95m e durante o show levantava 11 pessoas com um aparelho de ferro amarrado ao corpo."
"E o que isso tem a ver com a arqueologia?", perguntou Vitali, curioso.
"Nada, nem com a hidráulica. Mas foi na qualidade de especialista em hidráulica que Belzoni foi convidado pelo Egito a projetar irrigações. E enquanto isso descobriu a abertura na pirâmide de Quéfrem. Entendeu a conexão?"
"Não", respondeu Vitali, olhando-o com a mesma serenidade de antes.
"O senhor quer me provocar", exclamou Ramsey. "O senhor sabe que declarar que não entendeu é o modo mais desleal de agredir o interlocutor."
"Ou então o modo mais simples de dizer a verdade."
"Então devo lembrar-lhe que Belzoni, antes mesmo de Champollion, é um dos pais da moderna egiptologia. Desenterrou cidades, como Berenice, no mar Vermelho, descobriu o túmulo de Seti 1º no Vale dos Reis, transportou para a Europa achados de valor inestimável. E, sobretudo, abriu o acesso à pirâmide que se acreditava impenetrável."
"Mas e o nosso pobre Belzoni?", perguntou Vitali. "Qual a sua culpa?"
"Descender de um profanador de túmulos e de segredos", respondeu Ramsey friamente. "O senhor acha pouco? A culpa que se transmite aos descendentes. Apreendemos isso na Bíblia e com os trágicos, mas o Egito é uma civilização ainda mais antiga."
"O senhor está pensando na maldição dos faraós?", perguntou Vitali surpreso. "O senhor, que não acredita em mistérios?"
"De fato", respondeu Ramsey, sério. "O nosso pobre Belzoni foi regularmente morto por uma bala envenenada, assim como o templário foi regularmente enforcado na câmara mortuária."
"E por quem?"
Ramsey fez uma pausa. Depois, com o tom de obviedade que os esnobes destinam às notícias sensacionais, respondeu: "Pela seita secreta descoberta por Pereira."
"Mas então Pereira está vivo?"
"Claro", respondeu Ramsey. "Você o acreditava morto só porque desapareceu? Há algumas contradições em suas reações. O senhor acredita que quem morre continua vivendo, mas acha que quem desaparece está morto."
"Não me confunda as idéias!", disse Vitali. "Onde está Pereira?"
Ramsey abriu os braços: "Isso não posso dizer. Prometi-lhe sigilo absoluto, porque sua vida está em perigo. Mas as nossas também estão, e portanto me escute, por favor, com a máxima atenção."
Aproximou a cadeira da de Vitali e baixou a voz, como se costuma fazer quando se quer comunicar um segredo, mesmo não havendo ninguém por perto, e o resultado é que quase não se consegue ouvir:
"Pereira estava apoiado numa pedra giratória e de repente se viu num pequeno túnel subterrâneo. Percorreu-o devagar, o revólver na mão, e foi dar numa cela, surpreendendo o homem que havia acabado de matar o pobre Belzoni."
"Como podia ter certeza?", perguntou Vitali.
"Porque o ameaçou de morte com o revólver", respondeu Ramsey, satisfeito. "Apontou a arma para a têmpora do sujeito, depois de destravar o gatilho (nos filmes normalmente esquecem de fazê-lo), e o outro falou."
"Em inglês?"
"Claro! Parece esse o fato que mais o surpreende. Revelou, sob o efeito do choque, um segredo terrível."
"Pode dizê-lo, Ramsey?", perguntou Vitali, comovido.
"Devo dizê-lo", respondeu Ramsey energicamente. "É a nossa condenação à morte, como foi para Belzoni e para o templário que entrara pela pedra giratória."
Depois, indicou na noite ventilada e clara a enorme pirâmide: "Thamus, o faraó que ali está conservado, recusou, segundo Platão, a invenção da escrita, oferecida por Thot, porque os homens perderiam o dom da memória. Mas hoje sabemos que Platão confiou à escrita só uma parte da verdade, a exotérica, reservando a outra, a esotérica, apenas a seus ouvintes. Mais uma razão para não se dizer a inteira verdade sobre Thamus".
"Thamus, mestre oculto de Platão?", perguntou Vitali, com os olhos reluzentes.
"Num certo sentido, sim. Mas um mestre infinitamente mais radical. Deixou, no coração da pirâmide, um tesouro incomensurável em ouro e jóias, capaz de garantir por séculos a sobrevivência de sua seita, os Agrafoi. Seu objetivo último é impedir por todos os meios o uso e a difusão da escrita, para restituir aos homens a oralidade original."
"Uma meta evidentemente impossível", observou Vitali.
"Eu não teria tanta certeza", reagiu Ramsey. "A seita tem sua sede em Hermópolis, a cidade consagrada a Thot, mas tem seu centro operacional em Paris. Os capitais de que dispõe são ilimitados. Pretendo aprofundar-me no assunto, mesmo porque espero tirar algum proveito disso."
"Em que sentido?", perguntou Vitali.
"Chantagem, meu caro", sorriu Ramsey. "Imagine uma revelação, obviamente por escrito, sobre as finalidades da seita. Seria seu fim, mas o princípio de nossa salvação e, quem sabe, de nossa fortuna."
"Mas, por enquanto, o que devemos fazer?", perguntou Vitali, estonteado.
"Sumir, como fez Pereira", respondeu Ramsey, colocando as mãos sobre a mesa. "Antes que nos alcance a vingança dos Agrafoi. Foi o que Pereira me aconselhou agora há pouco, na base da pirâmide, e marcou um encontro comigo daqui a três meses."
Vitali murmurou, desolado: "Quer dizer que devo emigrar de novo?".
"Melhor aqui que no outro mundo", comentou Ramsey. "Enquanto isso, entrarei em contato com um amigo meu em Paris, Robert de la Grive, descendente daquele que naufragou no Pacífico, perto da ilha do Ponto Fixo, no século 17. É um especialista que pode nos dar um auxílio decisivo nas pesquisas sobre os Agrafoi."
Vinte e seis dias depois, em Paris, numa tarde luminosa, Robert de la Grive regressava a seu palacete no boulevard du Temple, 10, com a pasta inchada de um volumoso dossiê. Sentou-se à escrivaninha, na moldura da janela aberta para o jardim, e, com um sorriso sombrio, começou a escrever:
"Caro Ramsey, esses caras não estão brincando, deixe-me dizer-lhe, embora pretenda dizê-lo num tom de brincadeira e alusivo, e você pode entender por quê. O Centro de Estudos, na rue des Pyramides, apresenta credenciais impecáveis: pesquisas sobre as literaturas orais do mundo inteiro, a gestualidade, a mímica, as relações entre linguagem falada e linguagem escrita. Mas essas disciplinas escondem a finalidade suprema: a destruição progressiva da escrita. Sei que, colocado nestes termos, o assunto parece levemente paranóico. Mas essa empresa malograda, que atingiu seu ponto mais baixo com a invenção da imprensa -o Centro foi fechado por luto em 1450, após o suicídio do diretor-, assumiu agora conotações novas e não parece mais à mercê do mais forte. A difusão capilar da televisão favorece, além da atividade oral em sua acepção mais ampla, a desarticulação da linguagem por meio do uso de gritos, gemidos, lágrimas. Os livros se tornam cada vez mais breves e os formatos cada vez menores. Predominam os volumes em 24º, com uma letra por página. Para os mais reflexivos, serão resumidos na televisão na linguagem dos surdos-mudos. A sinalética, área dos criativos, tornar-se-á a escrita do futuro: primeiro passo da regressão, não aos hieróglifos, mas ao estágio precedente, da pictografia. Os não-leitores são bem tratados, sustentados, premiados. Surgem alianças políticas imprevisíveis. Como vê, o quadro revela aspectos preocupantes. Enfim -como você me disse por telefone-, há a ameaça onipresente dos Outros, mas acho mais prudente deixar isso pra lá, pelo menos por carta".

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