São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 1995
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A MALDIÇÃO DO FARAÓ

ANTONIO TABUCCHI
ESPECIAL PARA "CORRIERE DELLA SERA"

"E assim os convoquei", disse o Homem do Cachimbo, "para escrevermos juntos esta história que acabei de contar, mas por favor, professor Daverio, por favor, sr. Seume, antes de continuarmos venham dar uma olhada por esta janela."
Levantou-se e abriu as persianas. Os outros dois aproximaram-se. Abaixo deles, abaixo do Castelo e do Convento, estendia-se a doce paisagem de Tomar ao pôr-do-sol. O vale era verdíssimo, a planície longínqua era azulada, as andorinhas voavam alto no céu, uma paz idílica acalmava o olhar.
O Homem do Cachimbo convidou seus hóspedes a sentarem-se novamente nas cadeiras de couro de espaldar alto.
"Este Castelo", disse, "onde outrora se reuniam os Cavaleiros de Cristo, foi eleito pelos seguidores da Escrita como lugar de culto. Em homenagem aos Evangelhos. Pensem, como chegaria até nós a vida de Cristo se Marcos, Mateus, Lucas e João não a tivessem fixado com a Escrita? Quatro pontos de vista sobre uma única vida, quatro diferentes maneiras de contar um dos personagens mais importantes da história ocidental. Bem, aqui perto surgiu a redação de um pequeno jornal independente e livre que se chama 'Diario de Tomar', e foi esse o jornal escolhido, por uma pessoa da qual falarei depois, para publicar a nossa história. Mas ela será publicada simultaneamente por um grande jornal europeu, e assim se tornará conhecida dos seguidores da Leitura. Será aqui em Tomar que teremos nossa revanche, a revanche da escrita. Estamos prestando homenagem à antiquíssima arte de escrever, ou seja, à transmissão escrita do conto."
Daverio acendeu um pequeno charuto. "Mas", disse, "continuo não entendendo, não sei por que me escolheu."
"Simples", disse o Homem do Cachimbo, "porque o senhor entende de mistérios, sabe o que é o visível e o que é o invisível."
"E eu", perguntou Seume, "por que eu?"
O Homem do Cachimbo amassou o tabaco no cachimbo e aproximou dele um fósforo.
"Simples no seu caso também, meu caro Seume, porque o senhor frequentou os arquivos: quem conhece os arquivos está a par dos mistérios que cercam a vida de todos nós, pobres mortais."
"E então?", perguntou o professor Daverio.
"Então eu me ocuparei do primeiro capítulo, respondeu o Homem do Cachimbo, o senhor escreverá o segundo, Seume o terceiro, e a conclusão..."
Aspirou um trago de fumo e interrompeu-se.
"A conclusão...?", perguntaram em uníssono os outros dois.
O Homem do Cachimbo fez uma pequena pausa e pareceu buscar inspiração.
"A conclusão", recomeçou, "a conclusão chegará amanhã de Saint-Malo, por fax. Mas eu..."
E deixou outra vez as palavras no ar.
Os outros olharam-no perplexos e depois, em uníssono, perguntaram: "E o senhor?".
"Hum", disse o Homem do Cachimbo, "a conclusão posso intuí-la, mesmo porque consegui informações reservadas. Cada um se informa como pode".
"Mas quem o informou", perguntou com calma Seume, "talvez aquele senhor gordo e cardiopático que acompanhou toda esta história como um fantasma, aquele senhor, como disse que se chama, Perrero?".
"Podemos chamá-lo Perrero", disse sorrindo o Homem do Cachimbo, "mas vamos com calma, parece que estamos quase na hora do jantar, falaremos disso mais tranquilamente à mesa, posso oferecer-lhes um aperitivo?".
Daverio e Seume acenaram um sim com a cabeça.
"Tenho um vinho do Porto de 38", disse o Homem do Cachimbo, "de 35 seria melhor, porque foi uma vindima memorável, em todo caso vale a pena abri-lo, pelo menos para celebrar um amigo que naquele ano viveu um momento crucial de sua vida".
Dirigiu-se para um elegante móvel indo-português marchetado de marfim. Abriu-o, pegou uma garrafa e, com cuidado, procurando não agitá-la, desarrolhou-a. Cheirou o aroma e limpou a borda do gargalo com um guardanapo imaculado. Depois, serviu lentamente o vinho do Porto nos copos. Levantou o copo e os outros o imitaram. "À Escrita", disse o Homem do Cachimbo, "brindemos à Escrita".
"O senhor admitirá, caro amigo", disse Daverio, "que o senhor Seume e eu chegamos de longe, fizemos uma viagem tremenda para vir até aqui, primeiro o avião para Lisboa, depois o trem para Entroncamento, onde crescem abóboras gigantes, depois um ônibus para Tomar, cidade da qual não conhecemos nada e para onde viemos só porque o senhor nos convocou em nome da Escrita. Penso que seria oportuno que pelo menos nos explicasse algo sobre esta cidade, já que parece conhecê-la tão bem".
O Homem do Cachimbo fez um movimento para tranquilizá-los.
"Eu o farei enquanto caminhamos até o restaurante", disse. "Passeando pelas ruas desta cidade, tentarei ilustrar sua história e sua misteriosa arquitetura. Por favor, queiram seguir-me, reservei três lugares no restaurante, somos esperados."
Esta cidade, disse o Homem do Cachimbo enquanto saíam ao ar livre, esta cidade, cujo Castelo de Cera foi doado aos Templários em 1159, conserva ainda intacto o mistério de sua simbologia arquitetônica.
Chegaram a uma praça com um monumento.
"Esta é a Praça da República", disse o Homem do Cachimbo, "e esta é a estátua de Gualdim Pais, Mestre dos Templários, e daqui partem, dispostas numa cruz axial, as quatro ruas principais, orientadas para os quatro pontos cardeais. Mas o que gostaria de descrever é sobretudo o rigoroso e ao mesmo tempo indecifrável traçado arquitetônico do Castelo e do Convento de Cristo, que podem facilmente observar daqui. Vejam, aquela é a famosa janela da Sala do Capítulo, se aquele simbolismo for decifrado será possível entender o objetivo dos Cavaleiros de Cristo, que pensavam na instauração de uma fraternidade humana coreograficamente inspirada no culto de Paracleto".
O restaurante Os Templários tinha um pequeno e discreto letreiro. Os três homens entraram e foram recebidos pelo sr. Paiva, um taberneiro gigantesco e provido de um ventre considerável.
"Boa noite", disse o sr. Paiva, dirigindo-se sobretudo ao Homem do Cachimbo, "preparei um cabrito como o senhor me pediu, coroa de costeletas de cabrito, está saindo do forno, enquanto isso o vinho está na mesa, pensei num vinho do Ribatejo, um vinho tinto sazonado, vem de Santarém".
Os três homens acomodaram-se e o sr. Paiva chegou logo com queijo fresco, azeitonas e pão de milho.
"Isto é para abrir o apetite", disse.
Daverio e Seume estenderam os guardanapos nos joelhos.
O Homem do Cachimbo, ao contrário, colocou-o no pescoço. "Desculpem-me", disse, "mas nas refeições sujo sempre a camisa, sou como uma criança". E, assim dizendo, distribuiu o queijo e as azeitonas.
"E então este Perrero", perguntou, sussurrando, Seume, quando Felix Krull lhe entregou o telegrama com o endereço, "o que fez Perrero?".
O Homem do Cachimbo pegou uma fatia de pão de milho e sobre ela espalhou o queijo.
"Podemos chamá-lo Perrero", disse, "no fundo os nomes não têm importância, contudo, antes disso devo lhes dizer uma coisa, é preciso ir à origem dos fatos, como se costuma dizer. Enfim, devem saber que Perrero, fugindo do Portugal fascista, refugiou-se na França, em Saint-Malo, numa clínica dirigida por um amigo e patrício, um tal dr. Cardoso. Nisso, eclodiu a Segunda Guerra Mundial e os nazistas invadiram a França. Perrero e Cardoso organizaram na clínica um centro de resistência, abrigavam sob nomes falsos combatentes já 'queimados', e os reintroduziam na luta clandestina. Os nazistas nunca conseguiram descobrir esse centro da resistência, que foi fundamental, inclusive, para o desembarque na Normandia, porque Perrero e Cardoso sabiam de tudo por meio do serviço secreto britânico, e assim, depois da Libertação, Perrero e Cardoso receberam a máxima condecoração da República francesa, a Légion d'Honneur, e foram condecorados sob o Arco do Triunfo. Bem, digo isso para mostrar a consideração de que Perrero gozava na França. Foi isso que lhe permitiu fazer o que fez".
"E o que foi que ele fez?", perguntou educadamente Daverio.
Nesse momento chegou o sr. Paiva com uma bandeja enorme. Eram costeletas salpicadas com farinha de rosca e guarnecidas com folhas de agrião.
"Depois lhe darei a receita que me pediu", disse o sr. Paiva ao Homem do Cachimbo, "por enquanto, bom apetite".
Os três homens começaram a comer.
"Que delícia", disse Daverio, "nunca experimentei uma tal delícia".
"Concordo", disse Seume, "o refeitório do meu arquivo nunca me ofereceu pratos tão gratos ao paladar, mas vocês devem me entender, sou originário de um país que viveu uma grande austeridade".
"Austeridade me parece um eufemismo", corrigiu o Homem do Cachimbo.
"Podemos chamá-la totalitarismo", admitiu Seume.
Terminaram de comer em silêncio. O sr. Paiva aproximou-se. "E então, gostaram da comida?", perguntou.
"Entusiasmados", confirmou Daverio, "estamos entusiasmados. Mas o senhor não prometeu a receita? Estamos curiosos para aprendê-la".
"Simples", disse o sr. Paiva, "esse prato se faz com pão, alho e salsicha e, é claro, carne de cabrito. Acrescentem duas gemas de ovo. Cubram de farinha de rosca e assem no forno por 1h30, até dourar completamente, e depois sirvam com agrião. Talvez seja um pouco trabalhoso, mas no fundo é simples".
"E agora, o que tem de sobremesa?", perguntou o Homem do Cachimbo.
"Arroz-doce com canela", respondeu o sr. Paiva, "é o prato tradicional da estação, um prato pobre".
E encheu os cálices de vinho dourado.
"Bem", disse Seume ao Homem do Cachimbo, "e agora, se o senhor nos permite, gostaríamos de saber o que fez Perrero naquela circunstância, o senhor disse que tem suas informações, gostaríamos de conhecer o fim da história".
"Como já disse", replicou, "o fim da história chegará amanhã por fax, em detalhes, conheço o desenrolar dos fatos só por cima, e só posso contá-los de uma maneira aproximada".
"Nós nos contentaremos mesmo com um final aproximado", afirmou Daverio.
"Muito bem", disse o Homem do Cachimbo, "os fatos, aproximadamente, aconteceram assim. Quando Perrero, no Hotel Regency, recebeu de Felix Krull o telegrama e viu o endereço, entendeu tudo. Ele sabia. Confeccionou um hábito com um lençol do hotel e pegou um táxi. Foi para o ateliê Diotima, na rue de Fleurus, 10, e entrou, declarando-se um seguidor dos Agrafoi. Não demorou muito para entender o que estava acontecendo. Pôde constatar que os Agrafoi queriam destruir a Escrita, que adoravam Diotima, a Sábia ridicularizada por Sócrates no 'Banquete', e que Doris, aparentemente tão ingênua, comandava tudo. Quando os vídeos anunciaram que a odiada Escrita é o fundamento da democracia e que sem alfabeto o mundo voltaria à aristocracia, à era da Fé e dos Milagres, Perrero pensou no que eram os arqui-reacionários, os Eternos Reacionários, esta foi a idéia que lhe veio. Assim como entrara, saiu sem que ninguém o perturbasse, tirou o hábito, tomou um táxi e dirigiu-se para o boulevard Kennedy, onde fica a Maison de la Radio. Pensou que poderia servir-se da Palavra para defender a Escrita, que aquele era o melhor meio, porque não há por que uma causa não possa servir a outra. Chegando à Maison de la Radio, pediu para falar com o diretor. Mostrou, como credencial, sua Légion d'Honneur. O diretor ouviu-o atentamente. Perrero pediu-lhe um microfone no rádio-jornal de maior audiência, o jornal das 8h, para fazer um apelo de três minutos. O diretor concordou. Perrero agarrou o microfone. Não posso relatar suas palavras exatas, estas os senhores conhecerão amanhã pelo fax que receberão de Saint-Malo. Em todo caso, suponho que disse mais ou menos o seguinte: 'Cidadãos livres do mundo democrático, um perigo gravíssimo ameaça nossa liberdade. Uma seita de perigosos cultores da mais nebulosa mitologia, que chamaremos, por comodidade, os arqui-reacionários, os Eternos Reacionários, quer destruir a Escrita e com ela a Democracia, para retornar à oralidade e a uma época de Fé e Milagres, em suma, para retornar à aristocracia. A sede desses fanáticos fica no número 10 da rue de Fleurus, a seita é comandada por uma tal Doris, seus seguidores são os Agrafoi e adoram Diotima. Peço a todos os cidadãos que amam a Escrita e a Democracia que se dirijam imediatamente a esse endereço e os mantenham presos até a chegada das autoridades' ".
O Homem do Cachimbo encheu novamente o cachimbo e o acendeu.
"Muito bem", disse, "meia hora depois o edifício da rue de Fleurus estava cercado de uma multidão de cidadãos que atenderam ao apelo. Evidentemente, a Palavra serve também para defender a Escrita, basta saber usá-la. E no local estavam também as forças da ordem".
"E Robert de la Grive?", perguntou Daverio, "o que aconteceu com ele? e Vitali?".
"Bom", disse com calma o Homem do Cachimbo, "creio que estes detalhes os senhores conhecerão amanhã, em todo caso estavam em perfeita saúde, deram também uma entrevista".
"Vitali também?", perguntou Seume.
"Vitali recebeu uma injeção que o despertou", respondeu o Homem do Cachimbo, "e também deu uma declaração. Em todo caso, Doris foi protegida pela polícia da ira da multidão e agora está, com seus seguidores, numa prisão de segurança máxima. Posso dizer, porém, que a prisão possui uma boa biblioteca, mas não quero entediá-los, gostaria de acompanhá-los ao Castelo, já é tarde, e os senhores devem escrever seus capítulos". Saíram e percorreram a antiga rua Corredoura até o Castelo. O Homem do Cachimbo abriu o pesado portão e entraram no pátio.
"Este é o capítulo que escrevi", disse, "entregando-lhes umas folhas, amanhã entreguem tudo à redação do jornal, depois de amanhã a nossa história, que podemos chamar 'Viva a Escrita', será publicada na Europa. Agora vou deixá-los trabalhar, devo partir, boa-noite".
Apertaram-se as mãos debaixo das estrelas.
"Onde vai?", se não sou indiscreto, perguntou Daverio.
"Espera-me uma longa viagem", disse o Homem do Cachimbo, "vou para Nápoles, para homenagear um dos grandes escritores da humanidade, aquele sobre cujo túmulo escreveram: 'Mantua me genuit, Calabri rapuere, Tenet nunc Parthenope, Cecini pasqua, rura, duces' ".
"Entendi", disse Daverio.
"Eu também entendi", disse Seume.
Já na rua, o Homem do Cachimbo tomou a direção da estação. Olhou para trás e viu, sob a lua, o edifício do Convento. Era uma lua avermelhada, uma lua de calor. Pensou: "Nápoles, minha cidade querida". E teve vontade de cantar. Para si mesmo, como se murmurasse, cantou os primeiros versos de uma canção: "Vaco distrattamente abbandunato. L'occhie sotto 'o cappiello annascunnute. Mane int"a sacca e bavero ajzato. Vaco fiscann'a 'e stelle ca so' asciute' " (Vagueio distraído. Os olhos escondidos pelo chapéu. As mãos nos bolsos e a gola levantada. Vou assobiando para as estrelas que despontaram).
Pensava na mulher amada, com quem marcara um encontro. Será que a encontraria?

Tradução de LUCIA WATAGHIN

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