São Paulo, quarta-feira, 1 de fevereiro de 1995
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Peru e Equador —nervo exposto no continente

GERARDO MELLO MOURÃO

Em artigo publicado nesta mesma página (Folha, 11/02/82), a propósito do livro de um representante da "inteligentzia" equatoriana que chegou à Presidência de seu país, meu amigo Osvaldo Hurtado, editado no Brasil pela sempre atenta visão latino-americana de Fernando Gasparian, pude lembrar algumas marcas da dramática identidade política do Equador.
As escaramuças que sugerem a ameaça de um conflito, não propriamente com o Peru, mas com esse samurai dos pobres, que é o agrônomo Fujimori, são uma boa oportunidade para se avivar o perfil daquele mundo boliviano que teve suas fronteiras históricas possivelmente riscadas no famoso encontro de Guayaquil. Ali, encerrados numa sala secreta, sem testemunhas e sem atas, Bolívar e San Martin resolveram —ou, antes, não resolveram— suas pendências geopolíticas.
Ninguém sabe o que houve naquele diálogo entre os dois heróis da independência. O que se sabe é que Bolívar, a partir dali, retirou o Equador da influência do Peru, e integrou o país no esquema de sua Grã Colombia, no trinômio das repúblicas fundadoras da emancipação da América Espanhola. Depois, cada uma dessas repúblicas assumiu seu próprio destino. Delas dizia o Libertador que a Venezuela era um quartel, a Colômbia uma universidade e o Equador um convento.
O certo é que o "convento" passou a ser uma presença singular em nossa América. Se por um lado pode oferecer-nos todos os pratos do menu trivial da América Latina, com seus golpes militares, suas juntas e seus súbitos líderes populistas, por outro, apresenta componentes inconfundíveis no processo político. O país foi quase uma teocracia no governo de García Moreno —o mais típico estadista católico de seu tempo. A figura desse presidente encarna, de certo modo, as inquietações e a vocação do Equador.
Garcia Moreno, único chefe de Estado no mundo de nossos dias cujo nome foi lembrado para a canonização na Igreja, é uma figura controvertida, de sábio, de estadista, de tirano, de santo e de ultramontano. Foi assassinado, ao que se diz, pela maçonaria, depois de haver consagrado o país ao Coração de Jesus. Seja como for, ele é o protagonista político de um país fundado pelas ordens religiosas do tempo missionário, os franciscanos, os mercedários, os dominicanos, os agostinianos e, por último, os jesuítas.
Foram eles os plantadores de aldeias, criando reduções de índios em torno de suas capelas e estendendo a civilização até às regiões remotas e virgens, onde nem sequer os incas haviam conseguido penetrar. Os frades e freiras cunharam a própria toponimia do país, com os nomes prestigiosos de Santa Catarina, de Santa Clara, do Carmem Antíguo e do Carmem Nuevo.
Desse modo, criou-se o perfil de um povo e de um país. Suas lutas internas sempre giraram em torno de uma espécie de fé religiosa —contra e a favor— com seus clericais furibundos e seus anticlericais fanáticos. Hoje, os dois grupos já não se amaldiçoam como antes, até porque os ventos novos soprados de Roma trouxeram uma proposta humana à sociedade agônica de nossos tempos de desespero: a substituição do anátema pelo diálogo, conforme a expressão de Garandy.
A presença seminal do presidente Eduardo Frei (o pai) na América Latina, maior do que se imagina no Brasil, onde sempre se sabe pouco sobre nossos países do continente, chegou também ao Equador, com a mensagem da democracia cristã, que situou em novos parâmetros a dicotomia cristãos e não-cristãos nestas terras fundadas por frades e freiras.
Ainda recentemente, o presidente Fernando Henrique Cardoso, que viveu no Chile, mas que, lamentavelmente, não conhece o Chile nem a América Latina, tendo de seus países e de seus povos apenas um conhecimento sociológico, isto é, epidérmico, dizia na televisão que a democracia cristã de Eduardo Frei era um partido de origem fascista e corporativista.
Os sociólogos, ensina Unamuno, não sabem nada e, quando sabem, sabem "a posteriori". Nosso bom presidente não lê os filósofos e os pensadores. Seria bom remetê-lo ao pensador católico mais medularmente antifascista e anticorporativista —pensador e militante—, Jacques Maritain, para quem Eduardo Frei teria sido o maior estadista deste século no mundo ocidental. Mas isto é outra história.
É e não é. Pois os discípulos de Frei, como Hurtado no Equador e como meu amigo Rafael Caldera, que livrou a Venezuela da impostura de um suposto social-democrata, assim como livraram o Chile da ditadura militar, são ainda uma razoável esperança para a América Latina.
A tragédia da sombra de uma guerra na fronteira do Peru com o Equador sugere uma evocação daquele amargo testamento de Bolívar, no "Delírio sobre el Chimborazo": "Eu arei no mar. A América é ingovernável". A cruel decepção do Libertador deveu-se à erupção de conflitos entre nações que ele sonhara fraternas e solidárias.
Não podemos crer que esses problemas de fronteiras mergulhem a América Latina em drama semelhante ao que vive a civilizada Europa, ainda em nossos dias, como suas Tchetchênias, suas Bósnias, suas Irlandas ensanguentadas.
É certo que as fronteiras de vários de nossos países têm nervos expostos e doloridos. Ha problemas de fronteiras entre a Argentina e o Chile, entre a Venezuela e a Guiana, entre o Peru e vários de seus vizinhos. A disputa com o Equador é uma reincidência. A 22 de janeiro de 1942, o Protocolo do Rio de Janeiro conseguiu um entendimento entre os dois países. Não foi uma solução. Foi uma cafiaspirina.
Por esse protocolo, firmado pelo Brasil, a Argentina, o Chile e os interessados diretos, o que se adotou foi uma decisão do governo dos Estados Unidos, no momento em que Roosevelt consolidava seu esquema de poder no continente. A decisão foi clara e escandalosamente estabelecida para beneficiar o Peru, onde Washington precisava, então, enfiar sua lança imperial. Por ela o Equador renunciou aos direitos sobre três províncias de seu território histórico, recebendo a ficha de consolação de poder usar, para seus barcos, as águas do rio Amazonas.
Hoje, temos a OEA, cujo plenário já não é uma vaca de presépio do poder, as vezes bom, as vezes malvado, de Washington. Quando presidida por um diplomata brasileiro, o então embaixador Baena Soares, ela pôde exercer, em várias oportunidades, a competência, a autoridade, a honra e o direito que distinguiram a gestão desse representante do Itamaraty.
Parece que a guerrinha desencadeada pelo sr. Fujimori, destinada ao consumo interno do povo peruano, para uma cortina de fumaça sobre a terrível crise econômica em que se debate o governo de Lima, merece a atenção dos demais governos do continente. Esta é uma boa hora para o Itamaraty, se quisermos desvincular o nome do Rio de Janeiro do protocolo que aqui se perpetrou, acabando com a impiedade que amputou do Equador suas províncias de Tumbes, Jaén e Mainas —nervos expostos da América Latina.

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