São Paulo, quinta-feira, 2 de fevereiro de 1995
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Fome, tequila & solidariedade

LUIZ EDUARDO CARVALHO

O tal Programa Comunidade Solidária está, enfim, sendo oficialmente apresentado ao presidente da República. E ameaça entrar em funcionamento em breve. Para sua formulação, tecnocratas brasileiros parecem ter andado pelo México, para ali coletar subsídios técnicos e inspiração.
Não é preciso que andemos pelas calçadas frias da capital mexicana para avaliarmos, com os olhos, os ouvidos e o coração, as anunciadas benesses do programa. As imagens vêm até nossas casas pelos telejornais. Os resultados do milagre social mexicano antecederam os resultados do milagre econômico. Se estes hoje repercutem no mundo inteiro —abalando mercados e Bolsas de Valores, aterrorizando investidores, ameaçando o sucesso de um Plano Real ainda no berço— aqueles frequentam há meses os jornais internacionais, que não negam espaço às evidências: Chiapas e seus miseráveis estão aí presentes.
Falemos sério. O Programa Solidariedade foi, no México, uma fraude, sempre ali denunciado como apenas mais uma tentativa demagógica de manipulação popular, como apenas mais uma expressão da crônica corrupção internalizada na máquina política e administrativa do Estado. Por outro lado, nenhum outro país do mundo dispõe de um elenco tão variado e longamente testado de tentativas de intervenções nutricionais como o Brasil.
Foram intervenções de todo tipo e gosto. Do velho SAPS e seus bandejões populares aos dispersivos e multinacionais tíquetes-refeição que, classe média em lugar dos pobres, recebemos nos dias de hoje. Do subsídio do pão, que comia um bilhãozinho anual de dólares, ao maranhense tíquete do leite. Da cesta básica do Inan nos postos de saúde à Rede Somar e seus pequenos varejistas em bairros populares. Da merenda escolar às vacas mecânicas. E isso para não falar do pão de soja, do feijão-soja, dos biscoitos com sangue de boi etc..
Para treinar pessoal, para capacitar instituições e para dotar o governo federal de condições para formular e implementar programas contra a fome, apenas nesses ensaios, pesquisinhas e viagens, se gastou, através de acordo com o Banco Mundial, de 1977 a 1980, cerca de US$ 80 milhões. Não temos nada a aprender com o México nesse campo. Se é errando que melhor se aprende, também por isso, certamente, só temos a ensinar.
Todo político brasileiro, em campanha eleitoral, jura que vai acabar com a fome. E cada um deles, curiosamente, tem uma solução própria, que descarta, propositalmente, tudo que já foi construído antes. Aos vários programas sem verbas que o governo federal já mal operava, Sarney acrescentou o tíquete do leite, sem desativar inteiramente os demais. Brizola obrou os Cieps. Cristovam Buarque vem de salário-merenda. Collor e Itamar, iguais aos outros, ameaçaram com os Ciacs. Agora vem o nosso PSDB com a Comunidade Solidária.
A questão da fome é mesmo muito complicada. Principalmente para quem não quer pensar e se recusa sequer a ver. Em foto enorme, o "Jornal do Brasil" anuncia que os famintos estão recebendo as cestas básicas do Betinho e seu Natal Sem Fome. Na foto, desempenhando inconvincentemente o papel de famintas, duas senhoras simplesmente obesésimas.
Mistérios, contradições, equívocos, ah, como diria Vinicius, são demais os perigos dessa vida. Pouco sabemos sobre a fome e os famintos. Exagerar os famintos em números como 32 milhões, quando não é vulgar proselitismo, é coisa de burocrata querendo verbas para seus programas. Pior, formular programas para uma população-alvo dessa dimensão leva sempre ao fracasso, se não pela velha insuficiência de verbas, então pela completa impossibilidade física de a máquina governamental operar com esse volume de gente e de comida.
Por outro lado, já nem é ingenuidade, mas sim uma irresponsabilidade imaginar que temos aí, como quer Betinho, 3.000 atuantes comitês populares, e que isso poderia agora ser ampliado para 32 mil —ao menos um comitê para cada mil famintos— com cidadãos se mobilizando para trabalhar contra a fome, diariamente, de graça, com sol ou chuva, durante a semana e nos "weekends", o mês todo, o ano todo, os quatro anos da gestão Fernando Henrique. E mesmo depois, sem que saibamos ainda quem será o próximo presidente —pois não é possível acreditar que, em meros quatro anos, transformaremos indigentes num tipo raro de empresário brasileiro, que prescinde do amparo do Estado; ou que, depois de todo o custo para instalar essa rede de comitês, tudo será desativado pelo próximo governo.
Deixemos de fantasia. Dar um quilinho de arroz em uma gincana anual, ou trocar um quilo de açúcar por um ingresso para o show do Chico Buarque, isso é uma coisa; já trabalhar diariamente contra a fome, em comitês de bairro, a vida toda, de graça, todo dia, é coisa muito diferente.
Em suma, os dois pilares teórico-metodológicos do Comunidade Solidária são miragens. Nem milagrosa solidariedade mexicana, nem milhares de comitês de cidadãos solidários no Brasil. Isso só pode ser aceito como piada. E, se o caso é esse, recomenda-se ao presidente da República que mantenha o bom humor. De posse do calhamaçudo mas indefinido programa, ele poderia simplesmente repetir o que fez na LBA, onde, inocentada a ex-presidente corrupta, condenou e mandou executar a instituição por ela indefesamente corrompida. Que apenas encare o documento, e fazendo tipinho estereotipado de bandido de filme mexicano, a mão pousada sobre um fictício coldre à cintura, dando bom uso a seu perfeito espanhol, pergunte: "Como te llamas? Comunidad Solidária? Pum!!! Llamavas...".

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