São Paulo, quinta-feira, 2 de fevereiro de 1995
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Fernando Pessoa criou o slogan perfeito

DAVID DREW ZINGG
DE LISBOA

Chove hoje em Lisboa. Quando a chuva começa a cair das nuvens cor de chumbo, aqui na capital lusitana, você entende uma das razões pelas quais os tristonhos fados portugueses parecem ter sido compostos num cemitério.
Quando chove em Lisboa, a capital mundial da melancolia, até o telefone começa a tocar em tom menor.
O poeta-aviador Saint-Exupéry conhecia o clima de perto, dali no alto dos céus. Ele chamava esta cidade de "um paraíso triste e claro". Essa visão otimista unilateral não deixa o tio Dave mais seco quando ele sai do aconchegante Real Parque Hotel para enfrentar a garoa de Lisboa.
Lisboa teve outro grande poeta do século 20 —Fernando Pessoa, dono do chapéu e dos óculos que este escritor aqui daria qualquer coisa para possuir. Como sabe qualquer turista brazuca que visita o bairro do Chiado, Fernando Pessoa costumava frequentar o Café Brasileiro.
Ele passava tanto tempo no Café Brasileiro que fizeram uma estátua de bronze dele e a colocaram diante da porta. Dia após dia Pessoa fica sentado ali, tecendo pensamentos de bronze sobre o clima na cidade simpática que nos deu os bolinhos de bacalhau.
Como era um cidadão português bem instruído, Pessoa refletiu sobre os dois lados da questão do clima. Quando chovia, como hoje, o poeta tinha pensamentos cor de chumbo sobre ter que passar o resto da eternidade sentado na frente do Brasileiro, sem nem sequer um guarda-chuva.
Certa vez um cineasta local me disse que Lisboa tem 300 dias felizes de tempo bom por ano. Esse fato levou Fernando Pessoa a às vezes exercitar seu talento no lado ensolarado da rua. Um dia ele escreveu, referindo-se ao Sol atlântico de Portugal: "Em plena luz do dia, até os sons brilham".
Para mim isso só prova que os poetas exercitam mais ou menos o mesmo metiê que os carpinteiros. Um carpinteiro pode fazer um piano ou uma tampa de privada, se você lhe der madeira suficiente. Um poeta também produz praticamente qualquer coisa, desde que você lhe dê um bom tesauro.
Aposto um particípio passado como você não sabia que Fernando Pessoa trabalhou como redator da conta publicitária da Coca-Cola. Admita, Joãozinho, você não sabia. Agora entendeu o que quero dizer com poetas e carpinteiros?
Pessoa trabalhava para uma agência publicitária chamada McCann, que ainda existe. O poeta precisava de escudos e provavelmente pensava em tornar-se o Washington Olivetto português. Para quem for ler esta coluna no ano 2094, Olivetto é o número um da América Latina quando se trata de escrever slogans publicitários de arrasar, que te fazem sair agora mesmo e comprar seja lá o que for que ele quer que você compre.
Certo dia chuvoso em Lisboa, Fernando Pessoa chegou à agência furioso e chateado. Seu chapéu "cool" estava encharcado pela tempestade que inundava as ruas da cidade e tinha perdido a forma. Seus óculos radicais estavam tão embaçados pelo mau tempo que ele nem sequer conseguia enxergar para enfiar uma folha de papel almaço em sua máquina de escrever Underwood Standard. Um ping, ping, ping regular de água da chuva vazava em cima de sua mesa, no velho edifício do centro da cidade onde ele trabalhava.
Pior ainda, o Café Brasileiro tinha cortado seu crédito, portanto ele não ia poder tomar mais cafezinhos fiados até ter escrito o slogan daquela semana, a ser apresentado ao simpático cliente Coke. E mais: o slogan tinha que ser bom mesmo, senão Fernando Pessoa perderia seu emprego. E isso seria difícil, pois ele já trabalhava para o mais exigente editor de copy na Lusolândia, o irascível e muito temido Alberto Diniz.
Foi assim, do seio da amarga adversidade, que nasceu o que hoje é visto como o modelo mundial do slogan publicitário perfeito.
A obra-prima que Fernando Pessoa criou para a Coca-Cola fica pendurada embaixo do retrato do fundador da empresa, em seus escritórios no mundo inteiro. Aquela frase é usada como exemplo para os candidatos a criadores de slogans em universidades do mundo todo. A Pepsi-Cola oferece permanentemente um prêmio de US$ 1 milhão para o publicitário que conseguir superar a magia das palavras do poeta português.
O que Pessoa escreveu foi: "Coca-Cola —primeiro, estranha-se. Depois, entranha-se!"

O Chiado é território de Pessoa. Os poetas são pessoas que anseiam pelo impossível estado de ser todos e ninguém. Quando dão o melhor de si, chegam perto disso. Fernando Pessoa levou esse princípio muito longe. Ele inventou três outras pessoas, seus heterônimos, e criou um tipo diferente de poesia para cada uma delas.
Fisicamente, Fernando Pessoa era sósia do espião atômico da Gringolândia, Julius Rosenberg, que vivia no violento Bronx nova-iorquino, não no tranquilo Chiado. Tio Dave sempre achou que o sósia físico brasileiro de Pessoa fosse o brilhante cartunista carioca Jaguar.
Jaguar tem em comum com Pessoa outra coisa de que gosta —águas fortes. Jaguar é devoto de uma branquinha. O fígado de Fernando Pessoa pifou repentinamente em 1935, provavelmente por ter desfrutado de irrigação vitalícia com absinto.

Quando desci do elegante Airbus que carrega o viajante numa tapeçaria voadora da colônia para a metrópole, eu vibrei com uma espécie de antecipação cultural. Mais uma vez, Fernando Pessoa havia traduzido meus sentimentos em palavras, com exatidão.
"Cheguei a Lisboa", escreveu o poeta, "mas não cheguei a uma conclusão".
Lisboa está se modificando rapidamente, e o visitante também tem que ser veloz para captar o que está acontecendo —a repentina fusão da velha Portugal com o novo Europrogresso. Lisboa está a um passo de tornar-se como todos os outros lugares. A cidade está sendo sacudida por uma nova versão do terremoto de 1755. Desta vez os tremores estão ameaçando deitar por terra aquela sólida estrutura filosófica que deu à Europa sua rota para as riquezas da Ásia e que produziu o saudosismo tristonho do fado.
Portugal tem uma das economias que mais rapidamente cresce na Europa. No entanto, seu crescimento parte de um ponto tão atrás das outras que Lisboa dá a impressão de ser precariamente "atrasada". O progresso chegou a esta terra gentil sob a forma de enormes e multicoloridos shopping centers, que lembram gigantescos blocos de madeira de crianças.
Um lisboeta ultrajado me disse: "O que é novo em Portugal está vindo de investidores estrangeiros, porque temos mão-de-obra barata. Estamos nos tornando europeus e estamos esquecendo como ser nós mesmos —portugueses".
Pode ser —mas acho que alguns resquícios de identidade nacional ainda restam. Chateado porque achei que um chofer de táxi em Lisboa me extorquira uma nota de 5.000 escudos (cerca de R$ 33), encontrei o seguinte bilhete em meu quarto de hotel (em inglês hilário, cuja graça infelizmente se perde na tradução):
"Sr. Zing,
Esta cédula de 5.000 foi encontrada em sua lata de lixo.
Por favor tome mais cuidado!
Obrigada,
Ana Paula
Sua ama de quarto."
Você pode transformar um português em europeu, mas ele continuará sendo português por toda sua vida.

Tradução de Clara Allain

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