São Paulo, sexta-feira, 3 de fevereiro de 1995
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'Glenn Gould' reduz gênio à excentricidade

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Filme: O Gênio e Excêntrico Glenn Gould em 32 Curtas
Direção: François Girard
Elenco: Colm Feore
Onde: a partir de hoje no cine Belas Artes/sala Aleijadinho

Reconhecido como um dos maiores pianistas vivos desde sua gravação das "Variações Goldberg" de Bach, aos 22 anos, Glenn Gould deu seu último concerto nove anos depois, em 1964.
Insatisfeito com a rotina de concertos —que ele comparava aos vaudevilles e que, segundo ele, faziam do artista um ditador, subjugando a platéia— Gould foi um dos pioneiros da consciência eletrônica. "Na era eletrônica", escreveu num ensaio, "a arte da música pode se tornar muito mais importante, menos ornamental em nossas vidas".
Glenn Gould morreu aos 50 anos, em 1982, semanas depois de gravar novamente as "Variações Goldberg". É difícil resistir ao paralelo de uma vida que se encerra voltando ao início, como a própria composição de Bach. No filme de François Girard, que entra hoje em cartaz em São Paulo, o paralelo se multiplica: o filme inteiro é uma composição em "32 curtas", como as 32 variações.
Início e fim são simétricos, imagens do pianista se aproximando e se distanciando numa planície gelada, em seu adorado Canadá, ao som da ária que abre e fecha as Goldberg. Quase bonito e quase original, é um emblema deste filme quase bom, mas que não fica, afinal, à altura de seu assunto.
O filme inaugura um gênero novo: o documentário fictício, bem ao gosto das idéias de Gould. Montado como uma sequência de depoimentos e cenas da vida do pianista, na verdade não incorpora nenhuma filmagem do verdadeiro Gould (seu papel ficou a cargo do ator canadense Colm Feore). Há muitas passagens admiráveis, entre as 32, mas o todo é menor do que as partes e o filme vai perdendo o pulso a partir do momento em que Gould abandona os palcos.
Se, na versão brasileira, o filme ganhou o título absurdo de "O Gênio e Excêntrico Glenn Gould em 32 Curtas", há uma certa justiça nisso; depois de um início quase convincente, o filme parece cada vez mais voltado ao excêntrico, e menos ao gênio.
Mas não seria justo atacar, sem ressalvas, um filme com tantos bons momentos e que foi abençoado com o prêmio do júri na última Mostra de Cinema de São Paulo. Há uma linda filmagem do interior do piano, enquanto se escuta a gravação de Gould tocando o "Prelúdio nº 2 do Cravo Bem Temperado", de Bach. É uma paisagem da música, com as cordas, cravelhas e martelos parecendo lagos e montanhas do Canadá.
Mais adiante, numa das muitas simetrias bachianas, uma filmagem em raio X nos mostra o esqueleto do pianista em ação. Há breves entrevistas com alguns músicos que conheceram Gould: Yehudi Menuhin, Bruno Monsaingeon (por que só estes dois?). Há uma cena delicada de Gould, excitado e doente, num quarto de hotel, presenteando a camareira com a audição de um de seus discos.
Colm Feore, que quase nunca chega ao virtuosismo de Gould como ator de si mesmo, atinge um instante único numa cena de estúdio, quando "Gould" escuta o play-back de outra gravação de Bach. Nesses momentos, a personagem principal é a música, e o filme chega ao que tem de melhor.
Infelizmente, eles duram pouco e vão sendo substituídos, gradualmente, por discussões estéticas de valor discutível e por uma inclinação para o anedótico e o sentimental. Glenn Gould, o incansável tagarela no telefone, o viciado em remédios, o lobo solitário, o produtor de documentários radiofônicos, o investidor na bolsa, o sexualmente indefinido, o "incompreensível" excêntrico: este parece o personagem principal do filme de Girard.
Há três anos, a Sony lançou uma série de vídeos, "The Glenn Gould Collection", reunindo filmagens do pianista. Bruno Monsaingeon, diretor da série, realizou também o mais comovente de todos os documentários sobre ele: a filmagem integral da gravação das "Variações Goldberg", em 1982. É uma pena que o filme não incorpore nenhuma dessa imagens. Cada uma delas vale o filme todo de Girard, e sobre troco.
É bem verdade, como escreveu Edward Said em "Elaborações Musicais" (Imago), que toda a carreira de Gould revela um esforço para ser mais do que um simples pianista. Ao contrário de outros "excêntricos" e "gênios", ele foi, mais do que um intérprete, um inventor, com a coragem de construir uma outra idéia de música e um outro repertório. Sua opção pelo disco é o gesto mais dramático, mas não o mais decisivo, numa carreira musical que é um símbolo de nosso tempo.
Defensor do anonimato na arte (facilitado pela gravação) e de uma certa idéia de falsidade (edição eletrônica), Glenn Gould, paradoxalmente, é uma das maiores personalidades da música moderna. Com um sentido de contraponto até hoje inigualado, e um virtuosismo à toda prova, ele é também um músico do "repouso, da imparcialidade".
Seu estado predileto era "o êxtase", e ele foi um intérprete único da felicidade na música, em suas formas mais inesperadas. Boa parte do que se chama de pós-estruturalismo e pós-modernismo, como teorizados anos mais tarde, a idéia da arte como "tradução" e desvio, e da criação como "leitura" já se descobre adivinhada e, em certos aspectos, transcendida por este pianista incomum.
O filme de Girard, irregular como é, tem no mínimo a virtude de apresentar Glenn Gould para os que não o conhecem. Mas é preciso prestar atenção, mais do que às imagens, à trilha sonora. Nem sempre na frente da cena, às vezes não mais que entreouvida, mesmo assim ela vai narrando uma outra história e elaborando uma outra idéia, mais audaciosa e mais original, nos acordes de Bach ou Beethoven, recriados por Gould.

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