São Paulo, sexta-feira, 3 de fevereiro de 1995
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A teoria da representação mínima

RENATO LESSA

Os tempos são minimalistas. Diminuta deve ser a extensão do Estado, assim como a dos horizontes utópicos. Os generosos e visionários, entre nós, se converteram em utopistas de resultados. Os portadores de dilatada capacidade onírica falam línguas estranhas e não passam de metecos nesse universo hiper-realista. Concedo. A religião de mercado nos define como medíocres portadores de escolhas racionais.
Em nossas motivações mais solidárias, fomos invadidos por uma espécie de terceirização: somos cada vez mais "onguizados", fragmentados e reduzidos a circuitos de solidariedade restrita, com frequência geradores de danos públicos.
Nada de tipicamente brasileiro neste cenário. Pugnar pelo Estado mínimo e sustentar de modo fideísta que a "sociedade civil organizada" é capaz de produzir formas superiores e mais competentes de solidariedade e bem-estar em nada nos distingue. Mas o que se afirma como rigorosamente autóctone é a teoria da representação mínima. Essa é, sem dúvida, a edificante contribuição brasileira ao pensamento político no final deste século.
Como toda teoria política que se preze, esta possui uma premissa, uma estética e algumas vítimas potenciais. A premissa maior sustenta que o excesso de participação política —que resultaria da perversa combinação de um megaeleitorado, um exagerado número de partidos, um sistema de representação proporcional e de uma dilatada fragmentação parlamentar— produz incontornáveis dificuldades para governar. A estética configura um país com eleitores facultativos —dotados de energias cívicas e cognitivas com padrão nórdico—, dispostos em cartesianamente ordenados distritos uninominais e representados por não mais do que dois partidos e meio. Talvez falte ao cenário a imponente precisão do Big Ben ou a bucólica cidade que viu nascer Beethoven.
As vítimas. Não há teoria política possível sem algum grau de vitimização potencial. Nesse caso, o maior afetado é o principal interessado: o eleitorado. Antes de tudo, o eleitorado é atingido pela imperícia dos defensores da teoria. Em termos mais precisos, por um "non sequitur": já que os níveis de abstenção, votos nulos e em branco teriam sido alarmantes nas eleições de 1994, advoga-se como terapia o voto facultativo.
Com raciocínio análogo, poderíamos eliminar a evasão escolar com a proposta da escolaridade facultativa. Estaríamos, com certeza, inovando e não faltariam defensores da medida, aptos a fornecer justificativas libertárias para a teoria da educação mínima.
O fenômeno da alienação eleitoral —que combina abstenção e votos nulos— é subproduto da democracia de massas. Trata-se de um desafio que deve ser tratado pela ampliação da capacidade de incorporação do sistema político, e não pelo convite à redução do contingente eleitoral. Além disso, os efeitos do voto facultativo sobre a qualidade do eleitorado são assunto exclusivo de mitologia política. Em que sentido o eleitorado norte-americano é melhor do que o brasileiro ou o belga?
Mas, além de advogar a redução do tamanho do eleitorado, a teoria da representação mínima sustenta que o número de partidos políticos no Brasil é excessivo. A proposta, para essa patologia, é a aplicação de uma cláusula de exclusão. Os minimalistas brasileiros, são, em geral, germanófilos. A cláusula frequentemente proposta, portanto, é a teutônica: partidos com menos de 5% do eleitorado não teriam direito à representação parlamentar.
Os efeitos de tal cláusula, no Brasil, seriam curiosos. Tanto para a Câmara de Deputados eleita em 1994 como para a de 1990, uma cláusula de exclusão de 5% deixaria na Câmara Baixa oito partidos políticos. Em uma palavra, a cláusula de exclusão não nos transformaria em uma Alemanha. Haveria ainda tanta diferença entre nossos países como a que existe entre os biótipos de Marco Maciel e Helmut Kohl.
Se a cláusula de exclusão de 5% fosse aplicada nas eleições de 1982 e 1986, teríamos, respectivamente, dois e três partidos na Câmara de Deputados. O PT, por exemplo, só viria a ganhar representação parlamentar em 1990, o que torna estranha e desmemoriada a defesa da cláusula de exclusão —passada, é claro, a fase de risco— por parte de petistas de escol.
Se os minimalistas sonham com um Parlamento composto por dois partidos, devem propor uma cláusula de exclusão de 17%. Se optarem por três, devem propor uma exclusão de 12%. Para um cenário alemão —cerca de quatro partidos—, uma cláusula de 9,5%. Se houver algum minimalista maximalista, defensor de um sistema de cinco partidos, que se proponha uma cláusula de 7%. Em qualquer das opções oferecidas, seríamos imbatíveis em um campeonato mundial de bizarrias institucionais.
O maior dano proposto pela teoria ao eleitor é o da alteração do critério de transformação de votos em representantes. Aqui a germanofilia é explícita: só o voto distrital misto seria capaz de proporcionar modernidade política. Em outras palavras, propõe-se que um sistema octapartidário consolidado seja enquadrado em uma camisa-de-força de cerca de 250 distritos uninominais. Os deputados restantes serão escolhidos de acordo com listas partidárias que, com certeza, serão feitas com o máximo de lisura e espírito público.
A faceta minimalista da teoria, nesse ponto, é evidente: trata-se de reduzir as margens de escolha do eleitor que terá em cada distrito apenas um candidato por partido. Os termos da teoria da representação mínima são, pois, os seguintes: menos eleitores, menor número de partidos e menor oferta de representação. Tudo isso associado à redução da presença do Estado e à aposta fideísta na espontaneidade societária.
O país, com a recuperação econômica em curso, gerará cidadãos cada vez mais ativos e reivindicantes. Não parece ser prudente apostar na redução do sistema político e da sua capacidade de incorporação e integração. A teoria da representação mínima é, pois, um poderoso componente do paradigma da irresponsabilidade social máxima.

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