São Paulo, sábado, 4 de fevereiro de 1995
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Os demagogos

JANIO DE FREITAS

Com o pronunciamento de ontem, Fernando Henrique Cardoso retomou a cadeia, interrompida por Itamar Franco, das falas presidenciais caracterizadas pela insinceridade.
É norma dos políticos sentirem-se dispensados da honestidade intelectual, orientando seus pronunciamentos pelo que lhes parece conveniente dizer, sem qualquer compromisso com a realidade, a lógica e a coerência. O resultado desta licenciosidade é a demagogia, levada às falas presidenciais por Sarney, nelas mantida por Collor e agora retomada por Fernando Henrique.
O mínimo de recusa à licenciosidade demagógica já seria suficiente para impedir, ou modificar, a referência de Fernando Henrique à cesta básica: "A cesta básica custava R$ 108 em julho, hoje custa quase 10% menos". Quando introduzida a conversão de preços pelo Plano Real, a cesta básica custava R$ 86 (o preço varia de Estado a Estado, mas os 86 funcionam como média). O plano, portanto, não baixou o preço da cesta básica, como Fernando Henrique quis induzir. Aumentou-o. E se "hoje a cesta custa quase 10% a menos" do que em julho, ainda sim custa mais de 10% acima do que custava na introdução do plano.
Não há como conciliar integridade pessoal com a afirmação de que "o aumento dos parlamentares, dos ministros e do presidente" derivou da "competência exclusiva do Congresso" para determiná-lo. Pretender passar por inocente nesta história é vergonhoso. Exclusiva do Congresso é a competência para determinar a vigência do aumento, mas o montante absurdo que beneficiou parlamentares, ministros e o presidente foi estabelecido em acordo com a Presidência, representada por Clóvis Carvalho, ele próprio beneficiário do aumento.
Mal acabou de dizer que não usará o sistema "é dando que se recebe", Fernando Henrique explicou sua aprovação à anistia dos lucenas com o argumento de que, vetando a decisão do Congresso, abriria uma crise institucional, com problemas para a aprovação dos projetos do governo. E o que é isto, anistia de crimes eleitorais em troca de subserviência parlamentar, senão o "é dando que se recebe"?
A aprovação da anistia, para não contrariar a decisão do Congresso, contraria a sentença condenatória emitida pela Justiça Eleitoral e mantida pelo Supremo Tribunal Federal. O Poder Judiciário perdeu então, na ótica incoerente de Fernando Henrique, a estatura de equivalente ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo, podendo ter contrariadas as suas decisões, junto com o Direito mesmo, sem risco de crise institucional.
Mas o salário mínimo de R$ 100 também foi aprovado pelo Congresso. E, no entanto, Fernando Henrique o veta. E o risco de crise institucional por contrariar decisão do Congresso, existe ou não existe? Depende da honestidade intelectual com que seja considerado cada caso.
Para não perder a oportunidade de mais uma gafe, Fernando Henrique acusou de demagogia "os que procuram assustar o país com o fantasma da crise mexicana". Ninguém usou de mais ênfase, dizer que "toda a América Latina corre o risco de crise" por causa da crise mexicana, do que o presidente Bill Clinton. Mero demagogo, acabamos de saber. Foi um bom complemento de Fernando Henrique à recente gafe com que insultou os vizinhos próximos e distantes, ao dizer que "nas Américas só contam mesmo os Estados Unidos e o Brasil".
A gafe voltou-se contra Fernando Henrique. O seu governo já fez um primeiro aumento de impostos de importação, está planejando outro e criou mais incentivos à exportação. Tudo, declaradamente até pelo próprio Fernando Henrique, para evitar riscos como a crise do México. Logo, Fernando Henrique e o governo admitem o risco, tanto que adotam precauções. E como admitir o risco é demagogia, Fernando Henrique fez mais do que insultar Bill Clinton e outros: autodefiniu-se.

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