São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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DA GERAÇÃO QUE DISSIPOU SEUS POETAS

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi Roman Jakobson quem cunhou, em estudo famoso, a expressão a que alude o título: "a geração que dissipou seus poetas". Ele se referia aos poetas russos que surgiram nas primeiras décadas —uma plêiade extraordinária de talentos, que impressiona tanto pelo número quanto pelo desaparecimento trágico e prematuro. Esta é a sinopse fornecida pelo grande linguista eslavo: "Execução de Gumilióv (1886-1921), longa agonia espiritual, torturas físicas insuportáveis, morte de Blok (1880-1921), privações cruéis e morte com sofrimentos desumanos de Khliébnikov (1885-1922), suicídios premeditados de Iessiênin (1895-1925) e de Maiakóvski (1893-1930). É assim que os anos 20 deste século viram morrer, com idades variando de 30 a 40 anos, os inspiradores de uma geração, e para cada um deles a consciência de um fim irremediável, com sua lentidão e sua precisão, foi intolerável".
Jakobson escrevia em 1931. A esse quadro patético poderia acrescentar mais tarde outras mortes, não menos desoladoras e terríveis, como a de Ossip Mandelstam (1891-1938), num campo de concentração, ou a de Marina Tsvietáieva (1892-1941), suicida. Restaria considerar ainda a marginalização dos sobreviventes como Aleksei Krutchônikh (1886-1968), Anna Akhmátova (1889-1966) e Boris Pasternak (1890-1960). E a dos levados ao exílio e ao ostracismo como Ilia Zdaniévitch, ou "Iliazd", que morreu em 1975 e cujo centenário de nascimento se cumpriu no ano passado.
Um dos pioneiros da linguagem "zaúm" (transmental), participante, em 1918, com Krutchônikh, do grupo "41º", de Tiflis (Geórgia), Iliazd era um poeta-designer que explorava genialmente a grafia do cirílico, criando, conforme suas próprias palavras, "verdadeiras partituras" fonéticas para os sonorismos da poesia "zaúm". Sua obra mais expressiva, "Lidantiú, o Farol", foi publicada em Paris, em 1923. Trata-se de um poema dramático polivocal em 53 "quadros tipográficos", dedicado à memória do pintor russo Mikhail Lindantiú, um companheiro do grupo "41º". "Uma festa para os olhos", nas palavras de Gerald Janaceck ("The Look of Russian Literature - Avant-Garde Visual Experiments, 1900-1930", Princeton, 1984), ou, segundo o autor, "o testamento de um tempo irreversivelmente desaparecido".
Aqueles que hoje falam, de forma superficial e reducionista, na "volta ao figurativismo" do último Maliévitch —um sobrevivente da mesma geração, na área da pintura (1878-1935)— parecem não se aperceber do drama e da ironia implícitos na prática do autor do "Quadrado Branco sobre Branco" (1918), que, depois de 1930 e da ascensão do realismo socialista, pinta vultos sem cara, de costas para o espectador, ou retratos de família, à maneira quatrocentista. Então nada significam o figurativismo desfigurado, ou as imagens rigidamente anacronizadas do criador do Suprematismo, um dos profetas do não-representativismo nas artes visuais? Para mim, as não-caras falam. Os que sobreviveram foram descaracterizados, perderam a cara. Esses o estalinismo não fez questão de matar. Fez ainda pior. Humilhou e despersonalizou. Ou intimidou e calou.
Só a vingança lenta da poesia os resgatou e resgatará. "Façam o meu balanço a posteriori!" —escreveu Maiakóvski, em "Conversa sobre Poesia com o Fiscal de Rendas"— "No meio dos atuais traficantes e finórios/ eu estarei — sozinho! —/ devedor insolvente." "O poeta é o eterno devedor do universo/ e paga em dor porcentagens de pena." Ele foi, sem dúvida, o maior porta-voz, em poesia e vida, da relação conflitual entre poética e política, ética e tática, que consumiu todos esses notáveis artistas. Se —como quer Pound— os artistas são as antenas da raça, um país que massacra e despreza seus poetas sinaliza uma degenerescência grave no seu estágio civilizatório. Hoje não há decretos nem perseguições. Mas a luta dos poetas continua, em todo o mundo, e outras gerações estão sendo dissipadas, num contexto massificador e imbecilizante, onde os meios de comunicação tendem a nivelar tudo por baixo e a sufocar pelo descrédito ou pelo silêncio as tentativas de fugir ao vulgar e ao codificado. Por isso é sempre útil rememorar os personagens dessa prototípica tragédia cultural delineada por Jakobson.
A antologia de poesia russa de que participei como tradutor, ao lado de Haroldo de Campos, sob o crivo linguístico de Boris Schnaiderman, nosso guia seguro na selva selvagem do difícil idioma, privilegiou decididamente a obra de khliébnikov e Maiakóvski (ao qual dedicamos também um volume monográfico). Vale a pena saber um pouco mais da obra de outros poetas que foram representados menos significativamente naquela coletânea mas que fazem parte do elenco de grandes poetas da geração dissipada. Três dentre eles —Blok, Mandelstam, Pasternak— se aproximam por terem, cada qual a seu modo, evoluído para uma poesia caracterizada essencialmente pela densidade vocabular e pela substantivação da linguagem.
O percurso do mais velho, Aleksandr Blok, patenteia uma transição do simbolismo para o modernismo, que prevalece em sua última fase, passada a limpo pelo confronto com os cubofuturistas, e da qual resultou, como peça maior, o poema "Os Doze" (1918), por mim traduzido naquela antologia. É um caso semelhante ao da poesia de Yeats, purificada pelas práticas do imagismo e da "definição precisa" de Pound. Vejam-se estes trechos de um dos poemas do ciclo "Dança da Morte" (1912), que também integra a antologia —duas estrofes que se iniciam e terminam com uma sequência de substantivos (aqui citados em transcrição fonética):

Continua à pág. 6-9

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