São Paulo, terça-feira, 7 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crime é supérfluo na obra de Highsmith

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Refugiada com sua gata nos Alpes suíços, Patricia Highsmith nas últimas décadas fez questão de difundir a imagem de que sentia pouco —ou nenhum— interesse pela espécie humana.
Mas, de tempos em tempos, ela se sentia obrigada a sair da toca para lutar ao menos contra um preconceito dos homens: o de que escrevia romances de suspense.
Admiradora de Henry James, Graham Greene e Paul Bowles, Highsmith almejava o reconhecimento como uma escritora completa —e não apenas de um gênero considerado menor, inclusive por ela, como o policial.
Num pequeno livro que fez para candidatos a escritor, "Plotting and Writing Suspense Fiction", traduzido em Portugal como "A Criação do Suspense", Highsmith ensina que o crime é apenas um elemento acessório do romance.
"Neste mundo de pessoas iradas e de assassinos contratados —que no século 20 não são diferentes das pessoas enraivecidas e dos assassinos contratados séculos antes de Cristo— há alguém que se importe com quem mata ou é morto? Um leitor interessa-se se os personagens da história merecem que se interessem por eles."
Não por acaso, o personagem mais atraente de Highsmith é um criminoso —elegante, charmoso, inteligente, mas fora-da-lei.
A simpatia de Highsmith por Ripley é evidente em todos os romances protagonizados por seu anti-herói —mesmo no último deles, "Ripley Debaixo D'Água", lançado no Brasil em 1994, no qual Ripley se vê obrigado a agir para evitar que seu passado de crimes seja descoberto.
Mas essa admiração não revela uma problema moral —ou de falta de moral. Highsmith, em momento algum, faz apologia do crime ou da violência em sua obra. Ao contrário. Apenas explora todas as possibilidades literárias de Ripley.
Em outros de seus bons romances, como "Águas Profundas", "O Grito da Coruja" ou "Resgate de um Cão", os crimes, altamente previsíveis, servem apenas de álibi para Highsmith penetrar na cabeça de seus atormentados personagens.
A escritora se importa, nesses romances passados em cidadezinhas do interior dos EUA ou mesmo em Nova York, em retratar a mediocridade da vida cotidiana e a incapacidade geral de contornar a vulgaridade predominante.
Os escrúpulos de Highsmith em jamais ceder aos clichês do romance policial e a forma afiada com que descreve a sociedade norte-americana em sua obra talvez expliquem a dificuldade que a escritora enfrentou a vida inteira para ser reconhecida como escritora nos EUA, onde nasceu.
"Na França, Inglaterra e Alemanha não sou catalogada como escritora de suspense, mas simplesmente como uma escritora, com maior prestígio, maiores críticas e maiores vendas, proporcionalmente, que na América".
É com enorme desprezo que ela vê seus colegas de profissão norte-americanos, segundo ela, só interessados em sexo e violência.
Ao analisar a permanência da novela "Daisy Miller", de Henry James, um século depois de escrita, Highsmith assim descreve "o escritor contemporâneo, que ficará esquecido": "Primeiro escreve o roteiro para o cinema e depois martela a novela para coincidir com o filme. Personagens: nada. Moral: vale tudo."

Texto Anterior: Último Hawks discute a traição
Próximo Texto: FRASES
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.