São Paulo, quinta-feira, 9 de fevereiro de 1995
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'Livro de Jó' traz um herói impaciente

ELVIS CESAR BONASSA
DA REDAÇÃO

Peça: O Livro de Jó
Adaptação: Luís Alberto Abreu
Direção: Antônio Araújo
Com: Daniella Nefussi, Matheus Nachtergaele, Miriam Rinaldi, Sergio Siviero, Siomara Schroeder, Vanderlei Bernardino
Onde: hospital Umberto Primo (al. Rio Claro, 190, tel. 011/288 4863)
Quando: a partir de hoje, de quinta a sábado, às 21h, e domingos, às 20h
Quanto: R$ 12

A característica mais forte do personagem principal da peça "O Livro de Jó", que estréia hoje, não é a paciência tradicionalmente associada a seu nome. Jó não é paciente. É um paciente de hospital.
Dirigida por Antônio Araújo, a peça é encenada em três andares desativados do hospital Umberto Primo. Acometido por uma peste, fruto de uma aposta entre Deus e o diabo para testar sua fé, Jó é questionador e se revolta contra os castigos divinos gratuitos.
Em sua irresignação, é acompanhado por sua mulher, que lhe pede o tempo todo para renegar este seu Deus tão cruel —coisa que Jó afinal não faz. No texto bíblico, a mulher de Jó aparece só uma vez, blasfemadora. Na peça, a blasfêmia pretende ser o contraponto humanista e ateu da fé.
"Deus não é, Deus não há, está morto (...) Olha o teu corpo e o teu desespero, que é onde crês que Deus deve estar", diz a mulher, frente à incapacidade de Jó responder por que razão Deus o submetia à peste.
Que peste é essa? Uma das referências básicas da montagem, ao lado da discussão sempiterna sobre o sagrado, é a Aids. A peste bíblica que toma conta de Jó, embora nunca nominada ou caracterizada durante o espetáculo, remete à peste moderna.
"Os dois motores da nossa montagem foram a discussão do sagrado, coisa que já fazíamos no espetáculo anterior ('O Paraíso Perdido', montado numa igreja), e a Aids", afirma o diretor.
Toda a angústia de Jó está em saber por que foi ele, sem culpa, o escolhido para o castigo. E parte de seu esforço é convencer os outros de que, efetivamente, ele não tem culpa nenhuma para purgar.
"Não sei qual foi o meu pecado", diz Jó. "Deus sabe", responde um de seus amigos. E aqui mais uma vez é possível fazer correspondências com a vida de um portador do HIV, tentando encontrar —ou dar— explicações.
O texto se baseia no original bíblico. Foi adaptado por Luís Alberto Abreu ("Bella Ciao"), preocupado com os aspectos míticos da história.
"Eu tentei teatralizar o poema de Jó. Me interessou o mito desse herói sábio, que se nega a uma trajetória de luta e vai para uma trajetória de busca interna", diz.
Por isso, se na Bíblia Jó recupera ao final a saúde e tudo o que perdeu, bens e família, na peça ele alcança a iluminação, termo de sua "trajetória". Vê Deus —ou pensa que viu— e morre.
Esta cena final é feita no centro cirúrgico, último dos três andares de hospital percorridos por Jó em sua paixão. Local onde finalmente a platéia poderá sentar-se.
Todo o percurso anterior é acompanhado em pé pelos espectadores, através de uma cenografia com elementos hospitalares: máquinas de raio X, macas, carrinhos de lixo hospitalar.
Durante uma hora e 15 minutos de duração do espetáculo, o público não deve se sentir muito confortável. Só o fato de entrar em um hospital e percorrer algumas de suas salas já incomoda. Um incômodo que, afinal, é uma das propostas do espetáculo.

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