São Paulo, sábado, 11 de fevereiro de 1995
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Um anúncio exemplar

JOSUÉ MACHADO

A Petrobrás publicou anúncio de duas páginas de revista em mais uma demonstração de que é a maior. Ou uma das maiores. Na parte central do anúncio, a reprodução da capa da revista "Fortune" de julho de 1994, com o ranking das 500 maiores empresas do mundo. A Petrobrás aparece em 77º lugar. À esquerda da ilustração, o vasto título-mensagem:
"Para ver o nosso nome entre as 500 maiores empresas do mundo, nós tivemos que comprar a Fortune."
Nessa mensagem insinuante de singelo duplo sentido, dois problemas de língua. O amigo redator petrobrasiano misturou coisas. Imagina-se que quis dizer:
"Para ver o nosso nome entre os das maiores empresas do mundo,...".
Ou: "Para ver a Petrobrás entre as 500 maiores empresas...". Ou ainda: "Para ver a Petrobrás alinhada entre as 500 maiores empresas..."
Distração. Não tão pequena porque o anúncio foi publicado com nosso dinheiro em corpo 48 ou 62.
E para que o nós de "...nós tivemos..."? O português, a língua, não o padeiro, pode dispensar o pronome, porque a forma verbal também indica pessoa, e o texto costuma ficar mais enxuto.
Adiante, vem "...tivemos que comprar...". O grifo é nosso, como diria Meu-Nome-É-Enéas, preparando-se para a próxima. Um redator menos distraído teria escrito "... tivemos de comprar..." (ter de equivale a dever, ter a obrigação de). Escrevendo "... tivemos de...", o redator não correria o risco de ser chamado de "apoucado de compreensão". Foi assim, duramente, que um severo gramático classificou um redator por ter escrito "ter que" num texto de jornal em vez de "ter de". Ele fundamenta bem sua irritação, porque, diz ele, o que não pode ser preposição no lugar de de. Nesse caso, porém, para contrariedade dele e de outros linguistas pouco tolerantes, há quem, sem muito fundamento, considere aceitável o que no lugar do de junto do ter, porque o uso se alastra entre o povo e o que está aprendendo a ser de.
Não importa a discussão. Em jornalismo, como em publicidade, apoucados momentaneamente ou não, os redatores devem evitar, se puderem e souberem, usos discutíveis da nossa língua perdida e malpaga, já dizia a madre superiora. Nisso a publicidade leva vantagem, porque em geral não trabalha com a premência de tempo do jornalismo diário e os filtros são mais rigorosos. Ou deveriam ser. Serão?
O anúncio exemplar não fica nisso. O redator escorrega de novo no mesmo lubrificante limboso: "... um lucro equivalente à empresas como a Exxon e a Shell...". O grifo é nosso etc.
Nem é bom pensar no que diria um daqueles especialistas pouco tolerantes do apoucado de compreensão que escreveu isso. Será possível que o amigo tenha escrito, mesmo, "... à empresas..."?! Terá sido o chefe da manutenção do posto Petrobrás de Canapi das Alagoas o autor das maltraçadas? Teria sido sabotagem? Distração?
De que forma pôde ele, criativo redator, enfiar um sinal de crase na singular preposição que precede palavra no plural? Até o Fleury, grande ex-governador bem aposentado, sabe que isso é obsceno. Mecânico e político pode, redator, não.
Afora essa inocentada, sabotagem quase certa do computador malremunerado, há outra distração, copulada com ela ou resultado dela, difícil saber. Esse computador, ou esse redator, provavelmente quer a privatização da Petrobrás ou vê-la entregue ao imperialismo iânqui, como diriam os globais Alexandre Garcia e Alberico Sousa Cruz. Se não, teria escrito:
"...índice equivalente ao de empresas como a Exxon e a Shell...".
Ele deixou de escrever o correto, lógico e honesto ao de ("...índice equivalente ao (índice) de empresas...") e esculpiu o lucenoso e inacreditável "...à empresas...". Aliás, o que quererá dizer "índice equivalente a empresas"? (Sem sinal de crase que é para não ficar tão querciano).
Não é só. Mais abaixo, aparece de novo o mesmo apoucado ter que. "Mas para chegar lá, ela teve que trabalhar muito." Cobrando o que cobra pelos combustíveis, nem precisava trabalhar tanto. Como se lê, os deslizamentos textuais não terminam com a reedição do ter que, mas com a omissão da vírgula depois de "Mas".
"Mas (vírgula perdida), mas, para chegar lá, ela teve de trabalhar muito."
O redator também precisa trabalhar muito. Relembremos algo por certo desnecessário para o pessoal da publicidade, mas não para frentistas. Algo sobre a vírgula. Ela quase sempre funciona como parêntese (ou parêntesis). A vírgula quase sempre aparece acompanhada de outra; são pares, como o pefelê e o "pudê" ou o Congresso e as mordomias. Se há vírgula antes, tem de haver outra depois; se há depois, aparece uma antes. "Mas, vírgula, para chegar lá, vírgula...".
Uma na frente outra atrás, para satisfação geral.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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