São Paulo, sábado, 11 de fevereiro de 1995
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Os analfabetos são os castrados do Brasil

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das maiores violências que o homem já praticou contra si mesmo, contra a própria espécie humana, parece prestes a entrar na rotina sanguinolenta do duvidoso "divertimento" que se tornou certo cinema. Estou pensando na castração de meninos, prática bastante comum na Europa, do século 16 até o fim do 18. Faz sucesso no momento um filme francês, "Farinelli", que conta a história do cantor castrado que lhe dá nome.
O recém-publicado (Jorge Zahar Editora) "Dicionário Grove de Música - Edição Concisa" nos informa que Farinelli se chamava de fato Carlo Broschi, que viveu de 1705 a 1782, e o define como "soprano 'castrato' italiano". Fez furor nos palcos europeus da ópera. "No final de sua carreira, serviu à corte espanhola em Madri, dirigindo a música da capela, produzindo óperas italianas, e, supostamente, cantando as mesmas árias para alegrar seu monarca melancólico", que era Felipe 5.
Outro castrado famoso, Velluti, fez talvez maior sucesso, mas irritou Rossini, que para ele criara o papel feminino de "Aureliano in Palmira". Fizeram as pazes mais tarde porque Velluti era insubstituível, com coloratura e trinados tão inebriantes que matavam de inveja qualquer soprano mulher.
Acabo de chamar Velluti de ele e pelo pronome masculino me referi igualmente a Farinelli, mas de que gênero eram, afinal? E como se descobriu que meninos nascidos com boas cordas vocais podiam resultar, se capados na hora certa, em sopranos com a voz melhor que a feminina correspondente, porque fisicamente mais poderosa? Só sei sobre o assunto o que li em dicionários. Um destes aconselha, como o mais completo sobre o assunto, o livro de um certo A. Heriot.
O que aqui me interessa a mim —jornalista escrevendo um artigo especulativo à beira do início do terceiro milênio— é o incessante projeto que o homem parece ter de se alterar, se recriar. Os incessantes filmes que nos aborrecem com o tema de Frankenstein, sem contar os de robôs que viram gente, de clones e produtos genéticos variados, atestam a crescente disposição do homem de se fabricar desde os alicerces. De se aperfeiçoar não sei. Por alguma razão, tais criações parecem mais interessadas em fazer demônios. Os deuses como objetivo ficaram, como se diz agora, devagar.
Provavelmente "Farinelli", que está tendo muito boa crítica, se destaca por abordar pela primeira vez alteração feita no ser humano com uma finalidade estética, de criação do prazer da arte do canto e não de apenas criar algum monstro. Na época em que Mary Shelley escreveu seu longo e laborioso "Frankenstein", tenebrosos cirurgiões europeus ainda capavam meninos para a ópera. Fabricavam sopranos. O Oriente tinha produzido eunucos para vigiar (parece que às vezes vigiavam com excessivo carinho) as mulheres enclausuradas nos haréns, mas coube à Europa Ocidental essa sombria finura cirúrgica de produzir rouxinóis.
O papel da Igreja na história dos castrados é no mínimo equívoco. A Igreja sempre admitiu que mulheres fossem à missa, claro, mas em silêncio. Quem mandava era o apóstolo S. Paulo, dizendo na epístola aos coríntios: "Conservem-se as mulheres caladas nas igrejas".
Até hoje o sacerdócio é vedado às mulheres, mas antigamente elas não podiam sequer cantar no coro. Foi portanto muito benvindo ao coro o castrado, um sexo intermediário, fabricado com fins artísticos e até religiosos, se poderia dizer. O sexo dos anjos, diriam os defensores da castração. Jesus já tinha dito a Mateus, 19-12, "...há outros que a si mesmos se fizeram eunucos por causa do reino dos céus. Quem é apto para o admitir, admita". Não deixemos de lembrar que o papa Leão 13 proibiu literalmente a castração. Isto em 1878.
Bom. Desse crime nos livramos. Mas como o entrante século 21 promete ser de desbragado neoliberalismo, de experimentalismo genético e de moralismo reduzido, é bom incluir desde já entre os direitos humanos o direito de cada um aos próprios órgãos. De tempos em tempos —ainda, felizmente, em tom de boato ou mera suspeita— surgem notícias sobre tráfico de órgãos, que sairiam do corpo de crianças pobres para freezers de hospitais do mundo rico.
Penso nesse novo horror, o maior de todos, porque os castrados eram invariavelmente meninos das classes pobres e desprotegidas. Ninguém ousaria bater à porta dos ricos para propor a castração de mauricinhos. Todo o cuidado com o século 21 é pouco. E com o Brasil, que continua tão indiferente aos pobres e desvalidos.

Os nossos castrados
O presidente Fernando Henrique escolheu, para tema do seu primeiro pronunciamento televisivo à nação, um dos dois mais importantes problemas do Brasil —o da educação básica. O caminho reto deste país quando afinal aboliu a escravidão era redistribuir a terra e educar o povo, como pregavam André Rebouças e Joaquim Nabuco. Acabou preguiçosamente permitindo que a terra se concentrasse de tal forma que temos hoje um Congresso de tranquila maioria ruralista e que a educação continuasse a ser privilégio da classe dominante. Desde 1888 o Brasil finge que vai fazer a reforma agrária e tornar obrigatório o ensino primário.
Acabo o artigo fazendo ao presidente um apelo para que, num segundo pronunciamento, aborde o problema da posse da terra. Eu ia acabar num tom jocoso de mau gosto, dizendo que o Brasil nunca teve um cantor "castrato" porque em compensação nunca teve propriamente grande ópera. A verdade triste é que nossos castrados sempre foram as crianças que nada aprendem e os adultos que não possuem nada.

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