São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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Governo dilapida seu capital eleitoral

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O governo federal tem concentrado suas energias mais preciosas, nesse seu período inaugural de gestão, numa proposta ainda não definida de reforma constitucional.
Tal proposta, embora formulada genericamente, situa-se como prioritária na pauta do governo, pois assegura com ênfase que a estabilidade do real, a nova moeda, eleitora privilegiada do presidente, depende dessas alterações fundamentais a serem feitas na Constituição.
As proposições reformistas têm encontrado apoio de muitos setores da sociedade. A reforma tributária, por exemplo, chega a obter consenso de quase todos os setores da população.
Não determinados os delineamentos do que ocorrerá na área tributária, os contribuintes têm a ilusão otimista de que as coisas vão melhorar. Espera-se que o governo cumpra as suas promessas de campanha eleitoral, reduzindo os impostos e combatendo a sonegação.
Os mais esperançosos, dotados de credulidade incorrigível, chegam a sonhar que os impostos não mais serão pagos por eles, mas por outros. Os realistas e maquiavélicos esperam que, desaparecido determinado imposto, não mais se lhes cobrem o que devem.
A prática indica que, ao surgirem os ventos reformistas, os contribuintes, imbuídos de uma cautela natural, deixam de pagar os impostos devidos, para poderem acompanhar e se adaptar às evoluções ou involuções trazidas pela mudança. Essa tem sido a experiência. Durante as discussões de alterações significativas, os contribuintes optam por fazer caixa para enfrentar as novidades.
Há um traço cultural marcante nas elites dirigentes do país. Não só os dirigentes do Estado, mas também os das organizações empresariais e, em alguns casos, os sindicatos operários, invocam o pensamento mágico, milagroso diante de uma realidade imperfeita, indesejada ou deteriorada: realizar a reforma, para corrigir a situação. Nela se depositam, fervorosamente, todas as esperanças.
Infelizmente, o reformismo brasileiro esgota seu ímpeto na redação de leis. A reforma é refém do papel. A realidade, o dia-a-dia, são devidamente esquecidos. Daí a pequena efetividade das reformas. Como se diz, é coisa para inglês ver ou para aplacar consciências culposas da cúpula governante.
Mas o que se tem de concreto no país e que necessita ser enfrentado fora do papel é a fome, a miséria, as doenças, o analfabetismo, o desemprego, a falta de moradia ou de terra. Têm-se, ainda, mazelas que alcançam a todos: a corrupção, a hipertrofia das metrópoles, a insegurança pública, transportes precários, carga brutal para os que pagam tributos.
E o que o governo federal elegeu como prioritário é modificar algumas linhas da Constituição. Se não é um equívoco ou recorrência da teoria salvadora do milagre é, no mínimo, o que Paulo Nogueira Júnior classifica como teoria do escapismo. Uma tendência para eleição de objetivos laterais, fugindo ao principal.
Para a pavimentação da via preparatória dessa reforma constitucional entendeu o governo federal ser necessário sancionar a anistia do ex-presidente do Congresso, senador Lucena, e de outros tantos parlamentares envolvidos nos desvios de utilização da gráfica do Senado.
A tese invocada, misto de conciliação e complacência, foi a de evitar o confronto entre os poderes Legislativo e Executivo. Pergunta-se: como fica o Judiciário, que no uso constitucional de sua competência condenou, com base estrita na lei, o ilustre senador.
Para lubrificar as engrenagens e os mecanismos do Parlamento aumentaram-se os vencimentos dos parlamentares. Por simetria, também, os do presidente, vice e ministros de Estado.
Em seguida, vetou-se o reajuste do salário mínimo, mesmo com a Constituição determinando, em seu artigo 7º, inciso 4º, que "são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender as suas necessidades vitais básicas e as de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada a sua vinculação para qualquer fim".
É impossível acreditar que alguém, no gozo perfeito de sua saúde mental, considere possível atender a tantos itens que compõem as necessidades vitais básicas dos trabalhadores e de sua família, com R$ 70,00, preço de uma refeição para uma pessoa em restaurantes da moda, em Brasília.
Possivelmente, em crise de consciência, o presidente resolveu, em cadeia nacional de televisão, declarar sua intenção de reduzir em 25% os seus vencimentos, bem como os do vice e dos ministros.
Triste, pesarosamente triste, tal envelhecimento precoce de um governo eleito com tantas esperanças, que optou, talvez inconscientemente, pela contramão das expectativas da população e de seus compromissos de campanha.
Perdulariamente, o governo federal está dilapidando o precioso capital eleitoral, composto majoritariamente pelos desejos de melhoria dos brasileiros.
A aspiração coletiva é de que haja recuperação, nestes 46 meses e meio que restam de mandato para o presidente Fernando Henrique.
Seria útil que os tecnocratas e os dirigentes federais dimensionassem os beneficiários das suas propostas de reforma. Na privatização facilitada de estatais, na flexibilização dos monopólios (que beleza de eufemismo), privatização da Previdência e dos bancos oficiais, os beneficiários serão indubitavelmente os grandes grupos financeiros do Brasil e do estrangeiro.
E os perdedores, os prejudicados? Os usuais de sempre. Os trabalhadores, a classe média, os servidores públicos, civis e militares, submetidos à ameaça de desconstitucionalização do sistema tributário, redução dos direitos sociais e das garantias do servidor público civil e militar.
É preciso dizer o óbvio. Repeti-lo, ainda que ululantemente, em homenagem a Nelson Rodrigues. O que o governo entende serem obstáculos constitucionais a sua ação renovadora e que considera garantias obtidas por força do corporativismo nefando, em realidade são conquistas sociais, produto da nossa tradição constitucional e de uma constatação feita pelos fracos e humildes: a de que a lei ordinária vale pouco, não tem muita eficácia, ainda mais agora nos áureos tempos da medida provisória.
Daí o esforço vitorioso de se colocar as garantias da sociedade, do contribuinte e dos cidadãos na Constituição, configurando o chamado direito à esperança. Esperança de ver respeitados os direitos e garantias ali expressos. Esperança de que o salário mínimo seja efetivamente a expressão do definido no artigo 7º, 4º, já transcrito.
É recomendável que o presidente agregue à sua equipe de assessores pelo menos um sociólogo, para uma melhor compreensão do que a Constituição contém em favor da melhoria de condições de vida do povo brasileiro, que o elegeu.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, advogado, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

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