São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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As reformas e a luta que nos espera

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Continuamos não aceitando a ação predatória sobre o Estado, nem o apartheid social. A maioria da opinião pública informada sabe que uma oposição firme e consequente é a melhor contribuição que se pode dar à nossa nação e, paradoxalmente, à própria "governabilidade" do governo FHC.
Infelizmente, face ao domínio, ainda geral, das idéias neoliberais, até para fazer uma oposição consequente é preciso fazer alianças. Os termos delas e de nosso comportamento futuro não dependem apenas da bancada de oposição no Congresso. Dependem também dos movimentos sociais, da resistência dos interesses contrariados e de uma imprensa que informe com isenção e objetividade os conflitos verdadeiros em curso.
O plano de estabilização ainda não está terminado e esta é a questão mais ardente da conjuntura econômica. As reformas constitucionais vão ser enviadas como uma avalanche sobre o Congresso e esta é a questão política mais candente.
Comecemos pela economia. A reforma monetária levou a um problema macroeconômico grave: a valorização cambial. As perspectivas de absorção de recursos financeiros internacionais, embora de curto prazo, permitiram à equipe econômica estimar uma capacidade de financiamento externo de cerca de 2% do PIB.
A explosão mexicana não tinha sido prevista pelos analistas de plantão, embora fosse perfeitamente previsível pelo menos desde meados de 1993. (A autora já havia previsto que a situação mexicana era insustentável em artigo para esta Folha, em 09/09/93, intitulado "América Latina: passado, presente e futuro").
A opinião dos economistas de oposição era unânime contra a âncora cambial e contra uma abertura comercial descontrolada. Como se viu rapidamente, a oposição tinha razão.
Éramos também contra a abertura insensata ao capital financeiro de curto prazo (anexo 4) e contra a elevação da taxa de juros. Esta, como mecanismo de controle da elevação do consumo, é inócua para setores de alto poder de compra e para a classe média com acesso ao crédito especializado. Apenas penaliza os projetos de investimento de longo prazo e a produção para consumo de massas.
Infelizmente, como os negócios financeiros são mais difíceis de entender e os interesses muito pesados, raramente se menciona o custo fiscal desse tipo de política monetária.
Na verdade, a equipe quis fazer um ajuste em um ano, via sobrevalorização cambial e altas taxas de juros, que atraiam capitais especulativos, mantendo elevadas as reservas.
Na essência, esse é o mesmo programa de ajuste que a Argentina e o México fizeram. Só que a Argentina demorou dois anos e o México, cinco anos, e depois estourou.
Um ajuste em um ano com aberturas comercial e financeira descontroladas, para uma economia tão integrada e continental como a nossa, é uma brutalidade em termos econômicos e sociais. É como querer passar um elefante pelo buraco de uma agulha.
Além de desestruturar parte do sistema produtivo instalado no país, aumenta rapidamente o déficit em transações correntes e não estabiliza as perspectivas do balanço de pagamentos nem do crescimento.
As expectativas de curto prazo não batem com as de longo prazo. Fica todo mundo esperando para ver o que vai dar. O governo então apela para o discurso "salvador" das reformas constitucionais.
O que se verifica, porém, é mais grave. É a expressão desse conflito entre ministros, no coração do poder. Na semana passada, o PT, com o ânimo de contribuir para a reforma, pediu os anteprojetos de iniciativa do governo, em particular as reformas tributária e previdenciária, nas quais o partido, como é natural, defende abrangência, universalidade, progressividade dos impostos, vale dizer, justiça social.
Para surpresa da bancada, chegaram apenas no gabinete do líder, por intermédio do ministro da Justiça, Nelson Jobim, não as reformas urgentes que supostamente contribuiriam para o equilíbrio fiscal que vem sendo perseguido desde a primeira fase do Plano Real.
Em vez disso, foram enviados os projetos de exploração do subsolo e de definição da empresa nacional, que servem apenas para abrir caminho para a famosa privatização das empresas estatais, elegantemente apresentada com o nome de flexibilização.
Em matéria de projetos de reforma, o primeiro e o mais urgente deveria ser o da reforma tributária. Do ponto de vista do pacto federativo, não há Estado ou município que se ponha de acordo sobre a recentralização dos impostos.
Por outro lado, nem os agentes privados, nem as unidades da Federação têm projetos compatíveis entre si e/ou com a União em matéria tributária e fiscal. O que acontece é que a União vai numa direção, os Estados e os municípios em outra e o setor privado em uma terceira diferente.
Ou seja, esse é um projeto que requer negociações amplas e competentes (o que não está acontecendo). Caso contrário, seria melhor para o governo deixar como está e confiar da capacidade de a Receita Federal arrecadar mais e melhor.
O problema do setor público é gravíssimo e vai da desorganização administrativa (iniciada no governo Collor e continuada com o atual governo) até a distribuição da carga fiscal e dos encargos sociais.
Há conflito nas três órbitas —federal, Estadual e municipal—, além do conflito com o setor privado. Os projetos não são semelhantes. O setor privado quer desoneração, o setor público precisa de arrecadação.
O setor público não pode deslanchar com recursos fiscais nenhum programa social de vulto. Ao contrário, tal como vai, o novo governo terminará com um projeto desestruturante, sem políticas compensatórias, pior do que o ocorrido nos últimos anos nos principais países da América Latina.
A briga mais pesada será pela privatização da Vale do Rio Doce, do setor elétrico e das telecomunicações.
Em conclusão: não estou vendo desdobramentos promissores do plano de estabilização. Não sei em que os preços relativos vão dar, em particular o salário mínimo, o câmbio e o preço internacional das matérias-primas. Não sei que noção de "equilíbrio" cambial, monetário ou fiscal seja possível nas atuais condições.
Tampouco estou vendo o contencioso das finanças públicas resolvido, sobretudo do ponto de vista do pacto federativo. Não estou vendo como é que se resolve a arbitragem dos grandes projetos de infra-estrutura. Mesmo que tenham financiamento (o que é duvidoso), existem os problemas da rentabilidade esperada e da disputa das construtoras e dos poderes regionais.
Além das peripécias do plano de estabilização (agora amarrado às incertezas financeiras internacionais) e das possíveis contradições dentro da equipe do governo (sobre políticas fiscal e cambial), convém ter em mente o pano de fundo do projeto maior da aliança que levou FHC ao poder. Este é, evidentemente, a privatização.
Trata-se de ancorar de qualquer modo US$ 30 bilhões de capital financeiro especulativo (nacional e estrangeiro) em setores estratégicos —telecomunicações, energia e transportes— e controlar o sistema financeiro de poupança interna. Neste caso, o núcleo central são os fundos de previdência das estatais, que representam cerca de US$ 40 bilhões.
As "reformas estruturais" do Consenso de Washington destinam-se, aqui como em toda a parte, a propiciar a transferência maciça de patrimônio público para grandes grupos privados internacionalizados, sob o pretexto de que não existem recursos internos.
No caso do Brasil, esse pretexto é falso por duas razões. Em primeiro lugar, porque não se vendem ativos, desvalorizando-os, para resolver problemas fiscais que se repetem todo ano.
Em segundo lugar, porque não se extinguem fundos de poupança das estatais da ordem de US$ 40 bilhões a pretexto de acabar com privilégios de funcionários. Mas a campanha na grande imprensa e no Congresso Nacional já começou.
O que está em jogo é o destino desta nação, com a possibilidade de perder de vez qualquer capacidade de autodeterminação no seu processo de desenvolvimento. Como o processo ainda não está concluído, ainda há tempo de esclarecer os problemas e fazer as alianças corretas, antes de sermos levados de roldão, no Congresso, pelo rolo compressor armado pelo bloco comandado pelo PFL.

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