São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As ironias de um liberal dos trópicos

MARIO VARGAS LLOSA
ESPECIAL PARA "EL PAÍS"

Os institutos liberais do mundo afora —faço parte de um deles e já visitei muitos outros— geralmente se compõem de alguns poucos entusiastas, alguns empresários e outros tantos acadêmicos, cuja formação em teoria econômica e filosofia política costuma ser tão excelente quanto sua falta de aptidão em levar suas idéias ao público mais amplo.
Carlos Alberto Montaner crê que esta dificuldade visceral das idéias liberais —em comparação com as socialistas, por exemplo— em despertar uma mística popular e contagiar setores mais amplos vem do fato de que o liberalismo contradiz o senso comum, as supostas evidências cognitivas.
Evidentemente, os liberais dispõem de estatísticas contundentes para demonstrar que isso é fato, mas uma tradição poderosíssima de idéias recebidas, preconceitos e fabulações ideológicas costuma prevalecer sobre essas demonstrações razoáveis e racionais.
Por isso, temo que muitas pessoas ainda continuem estudando Marx e muito poucas Adam Smith. Este chegou mais perto da verdade racional do que aquele, é claro, mas sua verdade era insípida e confinada ao âmbito da inteligência, enquanto os argumentos daquele se alimentavam de todas as paixões que, ao longo da história, vêm mantendo vivo o sonho messiânico.
Apenas se existissem muitos liberais com o ímpeto polêmico e a militância combativa do embaixador José Osvaldo de Meira Penna é que outros galos começariam a cantar para o pequeno rebanho liberal. Seu nome soa longo demais para a pequena e ascética figura do idoso cavalheiro que conheci certa noite em Curitiba. Vestido de branco, dizia galanterias e ajudava as damas a se sentarem.
Mas não era, nem remotamente, aquele protótipo de diplomata que Jorge Edwards descreve como "o tigre dos coquetéis". Na mesa, durante o jantar, eu o ouvi em duas ou três ocasiões intervir com tão fina ironia e, com uma simples observação, transformar um intercâmbio banal numa discussão complexa que, naquela mesma noite, comecei a folhear os dois livros seus com que ele me presenteara. E que surpresa tive! Não consegui largá-los até terminar os dois.
O embaixador Meira Penna (aposentado do serviço diplomático e hoje professor na Universidade de Brasília) é um homem de grande cultura, que já leu todos os grandes clássicos e modernos do pensamento liberal, e que fez do liberalismo uma doutrina viva. É também um formidável polemista e, em "A Ideologia do Século 20", ele dinamita, um a um, todos os fetiches do populismo —marxistas, nacionalistas, fascistas e terceiro-mundistas.
Sua tese de que, apesar das diferenças entre elas, todas essas doutrinas comungam com o estatismo e são variantes do coletivismo, reforçam o Estado-nação e reduzem ou anulam a soberania individual e por isso mesmo acabam sendo, a longo ou curto prazo, incompatíveis com uma economia próspera e uma genuína democracia, é contundente e é fundamentada com exemplos tomados da história do século 20, pela qual o embaixador Meira Penna se desloca com a facilidade de um gato no telhado.
Mas os casos mais luminosos —e muitas vezes os mais tristes— que cita dizem respeito à realidade do Brasil, país que, nas páginas fulgurantes desses ensaios, vemos algumas vezes frustrar-se em suas aspirações de desenvolvimento, devido à insensatez e demagogia de seus governantes.
Mas foi sobretudo o outro livro de Meira Penna, "Opção Preferencial pela Riqueza", que me pareceu mais avassalador. O embaixador divide sua curiosidade intelectual pela filosofia econômica e política liberal com uma profunda adesão às teorias psicanalíticas de Jung (em cujo instituto em Zurique estudou) e à teologia, pois ele também é crente e praticante do catolicismo. Os capítulos desse livro procuram integrar essas três vertentes de pensamento numa síntese e, embora nem sempre esses esforços tenham o mesmo poder persuasivo, frequentemente desembocam em achados brilhantes.
A teologia da libertação é, naturalmente, o alvo predileto do raciocínio demolidor de Meira Penna, que, colocando sob a luz da análise lógica a "opção preferencial pela pobreza" de seus proponentes, conclui que, se estes fossem coerentes com suas teses e as levassem às últimas consequências, deveriam opor-se abertamente a toda política de desenvolvimento e progresso material da sociedade, e fazer da Somália, Ruanda ou Abissínia algo como um modelo ou protótipo moral, em que a sociedade inteira de fato atingiu a fraternidade universal da fome e da miséria compartilhados.
Rejeitar a riqueza como um desvalor, satanizar a quem a cria como inimigo do espírito e traduzir em valores políticos e sociais a renúncia aos bens materiais e as privações físicas podem garantir uma boa consciência "social" a alguns poucos crentes ingênuos ou incautos, mas, como alternativa para o conjunto da sociedade, tal filosofia só pode realizar-se num povo composto de ruínas humanas, num conglomerado de primitivos tuberculosos.
O embaixador Meira Penna tece ironias um tanto quanto cruéis acerca de alguns pensadores e políticos brasileiros, como Hélio Jaguaribe e o recém-eleito Fernando Henrique Cardoso, que agora defendem teses como a descentralização do poder e a privatização da economia, quando apenas quatro anos atrás, nas últimas eleições, ambos apoiaram a candidatura de Lula —que, se tivesse ganho a eleição, teria aplicado políticas radicalmente populistas no Brasil. Ele recorda que os dois —sobretudo Fernando Henrique Cardoso— foram grandes teóricos e promotores da "teoria da dependência", que fortaleceu em todo o continente o nacionalismo econômico e o crescimento desmesurado do Estado, atrasando terrivelmente o desenvolvimento da América Latina.
Este é o único ponto em que não concordo com o aguerrido embaixador. Por que Cardoso e Jaguaribe não teriam aprendido a lição do que ocorreu no mundo nos últimos anos, sobretudo desde a queda do muro de Berlim e o desmoronamento do mito coletivista e estatista? Nem todos são capazes de enxergar claramente, desde o princípio, no complexo e conflitivo campo das idéias políticas, dos sistemas filosóficos e das teorias econômicas.
Custou trabalho a muitos de nós —retrocessos, dúvidas, polêmicas, difíceis revisões— chegar às conclusões que a ele, pelo visto um lúcido privilegiado, pareceram evidentes desde o primeiro momento. O importante, no caso de Fernando Henrique Cardoso, não é o que pensou e escreveu e sim o que disse e prometeu em sua campanha eleitoral, o programa pelo qual foi eleito. Esse programa está alinhado com a modernidade e aqueles que, como o embaixador Meira Penna, têm as idéias e os princípios que a encarnam, devem agora recordá-lo disso e ajudá-lo a cumpri-lo.

Copyright Mario Vargas Llosa; direitos mundiais de imprensa do jornal "El País"

Tradução de CLARA ALLAIN

Texto Anterior: Educação sob o signo da eficiência
Próximo Texto: Centro, o álibi da direita
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.