São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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A INSÔNIA DA RAZÃO

MICHAEL JACOB

Pergunta - Quando se lê o que o sr. escreve, tem-se a impressão de que não acredita no diálogo. O sr. diz também que todo encontro marcado lhe parece uma espécie de crucifixão... Tenho consciência da dificuldade que pode representar uma entrevista consigo, mas estou aqui para tentar, apesar de tudo. Se começássemos pela sua infância na Romênia? O sr. a tem ainda bem presente?
Cioran - Sim, extraordinariamente presente. Nasci em Rasinari, uma aldeia nos Cárpatos, na montanha, a 12 km de Sibiu-Hermanstad. Eu amava muito essa aldeia; tinha dez anos quando a deixei para entrar no colégio em Sibiu, e não vou esquecer nunca o dia, ou melhor a hora, em que meu pai me levou para lá. Tínhamos alugado uma carroça e eu chorei, chorei o tempo todo porque tinha o pressentimento de que o paraíso estava perdido. Essa aldeia na montanha tinha para a criança que eu era uma vantagem enorme: depois do café da manhã, eu podia desaparecer até o meio-dia; voltava para casa e, uma hora depois, desaparecia de novo nas montanhas. Isso durou até os dez anos.
Depois, veio uma outra vantagem, a de morar lá em cima: durante a guerra de 14, meus pais, por serem romenos, foram deportados pelos húngaros, e meu irmão, minha irmã e eu ficamos com minha avó, ficamos totalmente livres, em suma! Era a época ideal! Eu gostava muito dos camponeses e mais ainda, dos pastores: tinha uma espécie de culto por eles. Quando tive que abandonar esse mundo, tive o pressentimento de que para mim alguma coisa se partia para sempre. Não parava de chorar e não esquecerei nunca disso.
Pergunta - Pelo que o sr. diz, foi literalmente arrancado do solo natal.
Cioran - Da terra e desse mundo primitivo de que tanto gostava, e do sentimento de liberdade a ele relacionado. Foi assim que me vi em Sibiu, uma cidade muito importante do Império Áustro-Húngaro, uma espécie de cidade-fronteira com muitos militares. Três etnias coabitavam ali: os alemães, os romenos e os húngaros. Pode ser curioso, mas isso me marcou para o resto da vida: não posso viver numa cidade onde só se fala uma língua, me aborreço imediatamente. Eu apreciava justamente a diversidade dessas três culturas, a verdadeira cultura, bem entendido, sendo a alemã; os húngaros e os romenos eram uma espécie de escravos que tentavam se alforriar. Havia nessa cidade de Sibiu uma biblioteca alemã que era muito importante para mim.
Em todo caso, depois da minha aldeia natal e de Paris, Sibiu (Sibiu-Hermanstad ou Nagyszeben, em húngaro) é a cidade que mais amo no mundo. Se a palavra nostalgia tem um sentido, é o pesar de ter tido que deixar uma cidade como essa e o de ter deixado minha aldeia. No fundo, o único mundo verdadeiro é o mundo primitivo onde tudo é possível e nada está atualizado.
Pergunta - O sr., na verdade, desterrou-se várias vezes?
Cioran - Sim, várias vezes. Primeiro, pelo fato de ter abandonado minha infância. E depois minha vida em Sibiu. Por que Sibiu foi uma cidade importante para mim? Porque foi lá que vivi o grande drama da minha vida, um drama que durou anos e que me marcou pelo resto dos meus dias. Tudo o que já escrevi, tudo o que pensei, tudo o que elaborei, todas as minhas divagações têm origem neste drama: por volta dos 20 anos, perdi o sono. Lembro-me de ficar passeando durante horas em plena cidade —Sibiu é uma bela cidade, uma cidade alemã, que data da Idade Média.
Eu saía por volta da meia-noite e simplesmente passeava pelas ruas, só havia algumas prostitutas e eu numa cidade vazia, o silêncio total, a província. Perambulava horas nas ruas, como um fantasma, e tudo o que escrevi mais tarde foi elaborado durante essas noites. Meu primeiro livro, Pe Culmile Disparàrii (No Cume do Desespero) é dessa época. É um livro que escrevi com 22 anos, uma espécie de testamento porque eu pensava que ia me suicidar. Mas sobrevivi. É que não tinha ofício algum, e isso foi muito importante. No fundo, como não dormia de noite e passeava pela cidade, não prestava para nada durante o dia, não poderia praticar um ofício.
Tinha uma licença, havia terminado meus estudos de filosofia em Bucareste etc, mas não podia ser professor porque não é possível, depois de passar toda a noite em vigília, ir bancar o engraçado na frente dos alunos, falar de coisas que não interessam. Essas noites de Sibiu estão portanto na origem de minha visão do mundo.
Pergunta - Mas essas noites também lhe permitiram descobrir todo um espaço extraordinário, logo alguma coisa de aberto, de fascinante...
Cioran - É verdade. Mas havia antecedentes no meu caso para a minha visão das coisas. Já tinha essa visão das coisas muito antes, mas foi a partir dos 20 anos que a compreendi de maneira sistemática. Devo precisar antes de mais nada que meu pai era padre ortodoxo, mas minha mãe era incrédula.
Curiosamente, ou por por causa disso mesmo, ela era muito mais independente de espírito que meu pai. Eu estava pois com 20 anos e um dia —eram duas horas da tarde, lembro-me perfeitamente— na frente da minha mãe, me joguei no sofá e disse: Não aguento mais. Minha mãe me respondeu: Se eu soubesse teria feito um aborto. Isso me causou uma impressão extraordinária, mas de modo algum negativa. Em vez de me revoltar, esbocei, eu me lembro, uma espécie de sorriso, e foi como uma revelação; ser o fruto do acaso, sem nenhuma necessidade, isso foi de certa maneira uma libertação. Mas me marcou pelo resto da vida.
Minha mãe, curiosamente, depois de ler as coisas que eu tinha escrito em romeno (ela não sabia francês), mais ou menos as aceitou. Meu pai, em compensação, ficou muito triste; ele cria e, sem ser fanático, sua profissão era a de padre; evidentemente, tudo o que eu escrevia o incomodava e ele não sabia como reagir. Só minha mãe me entendia.
E é muito curioso porque, no começo, eu a desprezava, mas um dia ela me disse: Para mim, só existe Bach. A partir desse momento, compreendi que me parecia com ela e, efetivamente, herdei vários dos seus defeitos, e também algumas qualidades. Essas são revelações que marcam uma vida. E então aconteceu uma coisa, sabe, escrevi um livro —meu segundo ou terceiro livro, que se chama Lágrimas e Santos.
É um livro que foi editado na Romênia em 1937. Ele foi extremamente mal recebido; primeiro, o editor, quando o livro estava quase pronto —ele estava em Bucareste e eu, nessa época, em Brasov— me telefonou para me dizer que não ia publicá-lo. Na verdade, não o tinha lido e, no momento da publicação, lhe disseram : Você leu esse livro? Então ele leu e me disse: Fiz a minha vida com a ajuda de Deus e não posso publicar o seu livro. (Risos) Isso é balcânico. Eu disse a ele: Mas é um livro profundamente religioso. Ele respondeu: Pode ser, mas não quero o seu livro.
Foi no ano em que eu vim para a França. Eu lhe disse: Eu tenho que deixar o país, tenho que ir para Paris por um mês. Pode ser, mas não quero o seu livro. Foi tudo o que respondeu! Fui até um café, estava desesperado, dizia para mim mesmo: o que vou fazer? Eu gostava bastante desse livro porque ele era o resultado de uma crise religiosa e finalmente encontrei um editor ou melhor um tipógrafo, um impressor que me disse: Eu vou publicá-lo para você. Então, saí da Romênia e vim para a França.
O livro saiu na minha ausência, em 1937, e meus pais se viram numa situação bem delicada; minha mãe me escreveu: Eu compreendo o seu livro etc, mas você não devia tê-lo publicado com seus pais vivos porque coloca o seu pai numa situação muito difícil e a mim também que sou presidente das mulheres ortodoxas... todos riem de mim na cidade.
Mas minha mãe, apesar de tudo, compreendeu esse livro, ela me disse: Vê-se que há uma ruptura interior em você, de um lado o blasfemo, de outro a nostalgia. Esse livro é o resultado de uma crise feita de vigílias. É por isso que sempre desprezei as pessoas que conseguem dormir, o que é mais ou menos um absurdo porque só tinha um desejo: dormir. Mas compreendi uma coisa: as noites em claro são de uma importância capital!
Pergunta - É nas noites em claro que se produz...
Cioran - Não somente isso, mas se compreende principalmente. Veja, a vida é muito simples: as pessoas se levantam, passam o dia, trabalham, se cansam, depois se deitam, acordam, começam outro dia. O extraordinário fenômeno da insônia faz com que não haja descontinuidade. O sono interrompe um processo. Mas a pessoa que tem insônia está lúcida no meio da noite, a qualquer momento, para ela não há diferença entre o dia e a noite. É uma espécie de tempo interminável.
Pergunta - O insone vive numa outra temporalidade?
Cioran - Sim, absolutamente. É um outro tempo e um outro mundo pois a vida só é suportável por causa da descontinuidade. No fundo, por que se dorme? Não é tanto para se descansar, mas para esquecer. O tipo que se levanta de manhã depois de uma noite de sono tem a ilusão de começar alguma coisa.
Mas se você passa a noite toda acordado, você não começa nada. Às oito horas da manhã, você está no mesmo estado em que estava às oito horas da noite e toda a perspectiva das coisas muda necessariamente. Eu acho que se nunca acreditei no progresso, se nunca fui logrado por esse logro foi também por causa disso.
Pergunta - Seria um tempo em que se vê o mundo no negativo?
Cioran - No negativo ou no positivo, como quiser, mas se tem um outro sentimento do tempo. Não é o tempo que passa, é o tempo que não passa. E isso muda a sua vida. É por isso que eu considero que as noites em claro são a maior experiência que se pode fazer na vida, elas marcam pelo resto da vida. Dá para compreender por que, no passado, a tortura consistia em impedir os acusados de dormir: ao cabo de algumas noites, eles confessavam tudo! O segredo do homem, o segredo da vida é o sono. É isso que torna a vida possível.
Estou absolutamente convicto de que se impedissem a humanidade de dormir, haveria massacres sem precedentes, a história terminaria. Esse fenômeno me abriu os olhos para sempre, por assim dizer. Minha visão das coisas é o resultado dessas vigílias, vigílias do espírito, ousaria dizer, é pretensioso, mas enfim, é um pouco isso. E, fenômeno muito curioso, minha adoração pela filosofia, pela linguagem filosófica —eu era louco pela terminologia filosófica— pois muito bem, essa superstição, porque se trata de superstição, foi varrida pelas vigílias. Porque eu vi que isso não podia me ajudar, me fazia suportar a vida, mas de maneira nenhuma as noites. Foi assim que perdi a fé na filosofia.
Pergunta - Mas encontrou muitos amigos nas letras ...
Cioran - Sim, perfeitamente. Isso aconteceu no momento em que vi que a filosofia não podia me ajudar, que os filósofos nada têm a me dizer. De todo modo, são os escritores que eu prefiro. Para mim, Dostoiévski é o maior dos gênios, o maior dos romancistas, tudo o que se quiser dizer, todos os superlativos. Eu li enormemente os russos, Tchekov, naturalmente.
Pergunta - Quando começou a ler Dostoiévski?
Cioran - Desde sempre. Mas só o compreendi mais tarde. Foi no período das noites em claro que compreendi Os Possessos. Mas, na verdade, só gostava dos grandes doentes e, para mim, um escritor que não é doente é quase automaticamente um tipo de segunda ordem.
Pergunta - O seu livro sobre As Lágrimas e os Santos é muito dostoievskiano, com aquela concepção da mulher ao mesmo tempo como prostituta e santa...
Cioran - De fato. Vou dizer-lhe porque esse livro teve uma certa importância em minha vida. Estava em Brasov e foi no único ano de minha vida em que cheguei a trabalhar... Era professor de filosofia num colégio, mas esse trabalho logo se revelou impossível para mim, eu só pensava numa coisa: largar tudo e ir para a França para escapar dessa situação. Minha passagem pelo liceu de Brasov foi realmente catastrófica, tive problemas com meus alunos, com os professores, com o diretor... em suma, com todo mundo. Consegui enfim ir para Paris mas —como lhe disse antes— quando saiu meu livro sobre os santos todo mundo se voltou contra mim. Com a exceção de uma jovem americana de 17 anos que me escreveu uma carta impressionante.
Foi portanto um desastre que me fez compreender definitivamente que, embora tivesse inquietação religiosa, nem por isso teria nunca fé. No fundo, perdi uma ilusão capital... Reli os místicos, mas o que me agradava neles era o lado excessivo e principalmente o fato de falarem com Deus de homem para homem, se assim posso dizer... Quanto a mim, por mais que me atormentasse, nem por isso a fé me era menos impossível. Mesmo hoje não posso dizer que seja um espírito perfeitamente a-religioso, o que constato é a impossibilidade de crer. A crença é um dom. Por certo, há muita gente que alimenta uma série de equívocos a respeito, mas para mim é impossível.
Pergunta - Então, já nesse momento os filósofos místicos eram para o sr. mais importantes que um Hegel ou um Kant...

Esta entrevista com Cioran foi publicada pela primeira vez no livro de Michael Jakob "Aussichten des Denkens" (editora Wilhelm Fink Verlag, de Munique), no ano passado, quando também apareceu pela primeira vez em francês, na revista "Magazine Littéraire". Ela será publicada este ano pela editora francesa Gallimard em um volume de entrevistas com o filósofo

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