São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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A mágica da duplicação espacial

IAN STEWART
DA "NEW SCIENTIST"

Há 70 anos os matemáticos poloneses Stefan Banach e Alfred Tarski provaram que é possível cortar uma esfera em seis pedaços e depois juntar os pedaços para formar duas esferas, cada uma delas do mesmo tamanho que a esfera original.
Isso soa não apenas estranho, mas completamente maluco. Deve ser evidente que os pedaços com que você fica na mão depois de cortar uma esfera em pedaços não podem ser juntados para fazer duas esferas do mesmo tamanho da original, porque o volume teria que dobrar.
Mas será que teria mesmo? Do ponto de vista de um matemático, tudo depende do significado que você atribui a "pedaços", "cortar" e "juntar". Os pedaços necessários para concretizar esta maravilha matemática são muito complicados, com uma estrutura infinitamente fina.
A mudança no volume é uma pista falsa, porque pedaços tão complicados quanto esses não têm volume. Não dá para se fazer a mesma coisa com uma esfera de ouro e tornar-se bilionário, entre outras razões porque o ouro é composto de átomos. Com a esfera matemática funciona porque essa esfera, falando tecnicamente, é composta por um número infinito de pontos, e é impossível dividir átomos em pedacinhos infinitamente pequenos.
Vamos falar sobre conjuntos —coleções de pontos no espaço. Esses conjuntos de pontos podem compor os objetos tradicionais da geometria, como as esferas, mas também podem ser usados para compor objetos mais complexos.
Vamos ter que definir alguns termos referentes a conjuntos, senão a explicação fica desajeitada demais. Então lá vai:
dizemos que um conjunto é subconjunto de outro se pode ser obtido pela remoção de alguns pontos. Por exemplo, os juízes da Suprema Corte britânica são um sobconjunto dos profissionais de direito;
- dizemos que um conjunto é divido em subconjuntos desarticulados se todos os pontos do conjunto ficam em apenas um dos subconjuntos. Na Inglaterra, a Câmara dos Deputados é dividida em subconjuntos desarticulados conhecidos como partidos políticos, e que abrangem trabalhistas, conservadores, liberais democratas, unionistas de Ulster e alguns outros, e cada deputado faz parte de algum desses subconjuntos;
- dizemos que dois conjuntos de pontos são equivalentes quando se pode dividir um conjunto num número finito de subconjuntos desarticulados que podem ser deslocados e juntados de novo, formando o outro conjunto, desde que isso possa ser feito sem modificar as posições relativas dos pontos que compõem cada subconjunto —isto é, desde que os subconjuntos de pontos permaneçam rígidos. Por exemplo, as peças de um quebra-cabeças e o quebra-cabeças pronto são equivalentes.
Utilizando essa linguagem, o paradoxo de Banach-Tarski diz que uma esfera sólida de raio unitário é equivalente a um conjunto composto por duas esferas sólidas desarticuladas de raio unitário.
Embora as esferas pareçam ser comuns, o fato de conterem uma quantidade infinita de pontos cria uma margem para comportamentos estranhos. Por exemplo, pode-se fazer com que um conjunto infinito de pontos pareça idêntico a um subconjunto dele mesmo. Para entender como, alinhe pontos numa linha separados por intervalos de números inteiros —0,1,2,3.... e assim por diante, ao infinito (veja ilustração).
Se você deslocar esse conjunto uma unidade à direita, você fica com outro conjunto consistindo de 1,2,3,4... também se prolongando ao infinito. O ponto 0 não está no segundo conjunto, mas como os dois conjuntos são infinitos, o fato de perder um ponto não importa. Se você pegar o conjunto 1 e colocá-lo em cima do conjunto 2, os dois conjuntos coincidem, ponto por ponto —em outras palavras, pode-se fazer com que pareçam idênticos.

Máquina de lavar louça
Esta idéia leva a um resultado que revela ser importante para o paradoxo Banach-Tarski: um círculo é equivalente a ele mesmo, menos um ponto. Para provar isso você terá que compreender o princípio que vou chamar de princípio da máquina de lavar louça.
Primeiro resolva qual o ponto no círculo que você quer tirar. Escolha um ângulo que não seja uma fração de uma volta inteira —por exemplo um ângulo de dois graus. Vá marcando pontos sucessivos em intervalos regulares daquele ângulo, partindo do ponto que você escolheu. A escolha do ângulo assegura que nenhum par de pontos vai coincidir, nunca, mas à medida que você os vai marcando, dando a volta do círculo, eles começam a se agrupar. Agora divida o ângulo em duas partes: a primeira contendo todos os pontos deste conjunto, e a segunda todos os outros pontos no círculo.
A seguir, pense no que acontece quando você "gira" o primeiro conjunto que você acaba de construir um passo, como o botão da máquina.
O que acontece é que você ganha um novo conjunto, que começa com o ponto 2 e contém todos os pontos contidos no conjunto anterior, menos o primeiro (aquele que você escolheu). O truque é o mesmo usado para os pontos alinhados em reta, só que eles são "dispostos em círculo". Em outras palavras, quando você divide o círculo nessas duas partes e depois as reúne, com uma parte adiantada um ponto, isso significa que você se livra daquele ponto escolhido.

Alienígenas
Vamos agora precisar do princípio do dicionário. Vou explicá-lo através de uma historinha.
Os alienígenas que habitam o planeta Xodarap têm um alfabeto muito curto que tem apenas duas letras: A e B. Para compensar a falta de letras, sua língua contém palavras supercompridas —por exemplo babbaaabbbabbabababbb (que significa lagartixa).
Os lexicógrafos de Xodarap resolveram compilar um dicionário contendo todas as palavras de seu idioma, listadas em ordem alfabética. O dicionário saiu muito grosso porque continha uma quantidade infinita de palavras, por isso resolveram torná-lo mais portátil, dividindo-o em dois volumes: o A, contendo todas as palavras começando com a, e o B, com todas as palavras iniciadas com b.
Depois algum espertinho observou que já que todas as palavras do volume A começavam com a, a primeira letra poderia ser omitida, para poupar espaço. E a mesma coisa para o volume B. Tudo estava indo às mil maravilhas até que o lexicógrafo-chefe examinou os bonecos dos volumes A e B.
Primeiro ele observou que os volumes eram idênticos, com a exceção das capas: ambas começavam com a, aa, aaa, e ambas chegavam à palavra que citamos acima, lagartixa, exatamente no mesmo lugar. Mas o pior era que cada um dos volumes era exatamente idêntico ao dicionário original de um volume só.
Os lexicógrafos de Xodarap haviam descoberto, inteiramente por acaso, que seu dicionário podia ser dividido e depois reunido, resultando em duas cópias dele mesmo. Eles haviam topado com o princípio do dicionário —uma maneira de se dividir um número infinito de pontos para gerar mais de uma cópia do conjunto original.
Armados com estas duas idéias —o princípio da lava-louça, com o qual podemos retirar pontos indesejados de um conjunto, e o princípio do dicionário— podemos agora examinar as provas apresentadas por Banach e Tarski para fundamentar seu estranho teorema.

Demonstração
Banach e Tarski se baseavam numa descoberta feita pelo topologista alemão Felix Hausdorff no início da década de 20. Ele conseguiu provar que, como o dicionário dos xodorapianos, a superfície de uma esfera é equivalente a duas cópias dela mesma. Foi assim que ele procedeu:
Primeiro Hausdorff pensou sobre meios para se deslocar pontos de um lugar a outro da superfície de uma esfera. Uma maneira é girar a esfera em volta de eixos diferentes, como se gira um cubo mágico (de Rubik). Hausdorff chegou a três possíveis rotações em torno de dois diferentes eixos da esfera inclinada a 45 graus. Vamos usar o símbolo r para denotar a rotação por 180 graus em torno de um destes eixos, e vamos chamar de p a rotação do outro por 120 graus. Se fizer p duas vezes o efeito é uma rotação de 240 graus, ou 120 graus na direção oposta, e vou chamar isso de q porque se parece com um p de trás para diante.
Como os habitantes de Xodarap, podemos criar um "dicionário" consistindo de "palavras" contendo as "letras" p, q e r. Lembrem-se de que existe um número infinito de tais palavras, mas que todas elas têm comprimento finito. Cada palavra corresponde a uma série de rotações.
Por exemplo, pqrp significa "faça p depois q depois r e depois q outra vez". Se você pegar qualquer ponto na superfície da esfera e aplicar estas quatro rotações para gerar um ponto novo em outro lugar, o resultado é exatamente igual a se você tivesse feito apenas uma simples rotação em torno de um eixo completamente diferente. Na realidade, cada "palavra" individual no dicionário de Hausdorff corresponde a uma rotação simples em torno de um único eixo.
A seguir —e esta é a parte mais inteligente— Hausdorff descobriu que é possível dividir seu dicionário em três livros desarticulados chamados A, B e C, com as propriedades qB=A, pC=A, rA=B'C.
Para compreender o que isso significa, imagine como seria aplicar todas as rotações no livro A a um ponto na superfície da esfera. Cada rotação gera um ponto novo, até que você se vê com um conjunto inteiro de pontos. Da mesma maneira, a aplicação de todas as rotações em B e em C ao mesmo ponto inicial gera dois conjuntos diferentes de pontos, que por sua vez são diferentes daqueles conseguidos usando-se o A.
Agora, suponhamos que primeiro você gere todos os pontos correspondentes às rotações A e depois aplique a rotação r a todos eles. Como rA=B'C, esse processo gera não apenas todos os pontos correspondentes a B mas também os que correspondem a C. A seguir, separe os pontos B e aplique q a todos eles. Mais uma vez, você volta a gerar A. Como resultado deste conjunto de rotações, você começou com uma cópia de A e acabou com duas.

Explicação
Assim, temos agora um meio de dissecar um dos volumes do dicionário para fazer duas cópias idênticas do original.
Se o dicionário de rotações de Hausdorff pudesse ser usado para gerar cada ponto na superfície de uma esfera, teríamos mais ou menos provado uma versão bidimensional do paradoxo de Banach-Tarski.
Mas infelizmente isso não é possível. Simplesmente não há palavras suficientes em seu dicionário para cobrir todos os pontos.
Pode parecer surpreendente que um número infinito de palavras não seja suficiente, mas na realidade não basta a infinitude.
Mas nem tudo está perdido. Hausdorff conseguiu demonstrar que pode-se escolher um conjunto de pontos, chamado H, e depois aplicar todas as rotações no dicionário a cada um dos pontos nesse conjunto, em vez de a apenas um único ponto específico.
Assim, já dispomos de provas de que a superfície de uma esfera pode ser dividida e reconstruída para formar duas cópias idênticas dela mesma. O que Banach e Tarski perceberam foi que virtualmente a mesma prova também funciona para uma esfera sólida.
Para entender como, imagine a superfície como uma cebola de várias camadas. Você pode dissecar cada superfície e reconstruir duas cópias idênticas. Portanto, você pode dissecar a esfera inteira e reconstruir duas cópias idênticas.
A objeção intuitiva levantada contra o paradoxo é que ele parece envolver a duplicação do volume de uma coisa, sem acrescentar nada a ela —ou seja, contrariando a conservação da matéria. Para fugir disto tudo há a idéia de que os pedaços em que dividimos a esfera são tão complexos que não têm volumes bem definidos. Se tivessem volume, a dissecção paradoxal não poderia existir. Mas ela existe, então eles não têm volume.

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