São Paulo, quarta-feira, 15 de fevereiro de 1995
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'A Última Gargalhada' reinventa o cinema

RUY CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fãs e estudiosos do cinema nunca deixam de maravilhar-se com as primeiras imagens de "A Última Gargalhada": a câmara desce pelo elevador que revela o saguão de um grande hotel. Corte abrupto para a porta giratória, através da qual se vê o porteiro, garboso nos seus bigodes e dragonas, recebendo os hóspedes que chegam debaixo de tremenda chuva. Ali está um ser humano no seu apogeu. É sublime —e de uma intensidade plástica e poética que os menores de 30 anos devem achar inconcebível num filme de (incrível!) 1924.
Mas cada "take", cada segundo de "A Última Gargalhada" é assim: um exercício de estilo, de um requinte que beira o acinte. Seu diretor, o alemão Wilhelm Friedrich Murnau (1888-1931) já havia feito "Nosferatu" (1922) e, em 1930, faria o insuperável "Aurora". Mas bastaria "A Última Gargalhada" para torná-lo um dos grandes.
Vários recursos que ficariam incorporados ao cinema foram inventados, quase a muque, neste filme. Um deles, o efeito de uma lente "zoom" ao contrário, na sequência em que um cidadão toca uma corneta em "close" e Murnau quer dar a entender que o som chega aos ouvidos do protagonista Emil Jannings.
Em 1924, o cinema era mudo e a lente "zoom" não existia. Como fez Murnau? Pondo a câmara numa cesta amarrada a uma roldana e puxando-a para si.
Primitivo? Sim, mas o efeito resultou sensacional. E quem dera que uns poucos diretores de hoje tivessem a sensibilidade de Murnau para aproveitar os recursos de que agora dispõem. Mas note bem: por mais técnico, Murnau não usava sua imaginação para exibicionismos ocos, como os de Abel Gance em "Napoleão". Nenhum movimento de câmara em "A Última Gargalhada" (e há dezenas deles) é gratuito. Todos subjugam-se à história.
E esta é singela e comovente. O porteiro de um hotel elegante de Berlim é adulado pelos vizinhos em função de sua farda e cargo. Um dia, ao carregar com dificuldade uma mala, é considerado velho e rebaixado a atendente de toalete.
Tem de trocar o pesado uniforme de botões dourados pelo reles casaquinho branco e sua função agora é servir toalhas e espanar os sapatos dos grã-finos. A vizinhança o descobre e o ex-porteiro conhece a humilhação e o desprezo, equivalentes à hipócrita adulação que antes lhe dispensavam.
Mas, para que o espectador não saísse frustrado, o produtor e roteirista Carl Mayer obrigou Murnau a filmar um final feliz: o ex-porteiro torna-se herdeiro de um milionário excêntrico e volta ao hotel como cliente. Regala os ex-colegas com gorjetas monumentais e ri por último. Murnau esperneou com essa imposição, mas sabe de uma coisa? Ficou melhor assim. Deu um toque lubitschiano ao seu filme (de Ernst Lubitsch, o diretor que, com Murnau e Fritz Lang, formou a grande trindade do cinema alemão).
Murnau não foi o único responsável por "A Última Gargalhada". Seu quase co-autor foi o fotógrafo Karl Freund, responsável também pela câmara em "Metropolis", "Varieté" e outros clássicos alemães e americanos. A cópia brasileira em vídeo nem sempre faz justiça aos seus fabulosos preto, branco e cinza —às vezes ganha uma tonalidade esverdeada, que deixaria Freund roxo de ódio.

Título: A Última Gargalhada (Der Letzte Mann)
Diretor: F.W. Murnau
Elenco: Emil Jannings, Marx Hiller, May Delschaft, Hans Unterkirchen
Produção: Alemanha, 1924, 74 min.
Distribuição: Continental Home Vídeo (tel. 011/284- 9479)

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