São Paulo, quarta-feira, 15 de fevereiro de 1995
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As pessoas em primeiro lugar, para valer

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

No discurso sobre "O Estado da União" feito para o Congresso norte-americano, em janeiro último, o presidente Bill Clinton, ao tentar convencer os congressistas a aceitarem um aumento moderado para o salário mínimo, disse que eles iriam ganhar naquele mês o equivalente a um ano de trabalho de uma pessoa que receba o salário mínimo. Se o presidente Fernando Henrique Cardoso quisesse usar imagem semelhante, poderia dizer que os congressistas brasileiros receberão em fevereiro, com o adicional de ajuda de custo, o equivalente a 15 anos e meio de trabalho de uma pessoa que ganha o salário mínimo (o vencimento de março representará mais de sete anos de trabalho de uma pessoa que recebe o mínimo).
Só que, paradoxalmente, enquanto nos EUA o presidente está pedindo para o Congresso compreender a situação e conceder o aumento de US$ 680 para aproximadamente US$ 800 por mês, aqui no Brasil o presidente está explicando o seu veto ao aumento de R$ 70,00 para R$ 100,00, apenas aceitando incorporar o abono de R$ 15,00 até abril.
A diferença é ainda maior quando se considera que nos EUA há também o imposto de renda negativo. Nos EUA, o trabalhador com mulher e duas crianças que recebe o salário mínimo tem direito a receber um crédito fiscal de 40% sobre a sua renda, para elevá-la acima da linha oficial de pobreza. Assim, se obtiver pelo trabalho US$ 8.000 anuais, valor próximo ao salário mínimo para quem trabalha o ano todo, sua renda anual passa para US$ 11.200. Desta forma, ele tem assegurado a maneira de prover o mínimo que uma família precisa ter nos EUA para uma sobrevivência digna.
O Earned Income Tax Credit —EITC— foi introduzido nos EUA há 20 anos, mas foi significativamente ampliado pelo presidente Bill Clinton, na sua lei orçamentária de 1994 que foi, neste aspecto, aceita por republicanos e democratas. Foi justamente o instrumento de política econômica que correspondeu ao mote utilizado na campanha presidencial, segundo a qual "as pessoas viriam em primeiro lugar", que foi aqui usado pelo candidato, hoje presidente, Fernando Henrique Cardoso, sem que, entretanto, tivesse apresentado um instrumento de política econômica correspondente.
Segundo avaliação do professor Albert Hirschman, feita no Brasil por ocasião da posse do presidente, o EITC constitui na maior realização do presidente Bill Clinton, pela qual ainda não recebeu o devido crédito. Em 1994, 15 milhões de famílias beneficiaram-se deste instrumento que constitui-se no maior programa social do orçamento dos EUA, ultrapassando aqueles que hoje estão sendo questionados pelos republicanos, como a assistência para as famílias com filhos dependentes.
O secretário de Trabalho, Robert Reich, do governo Clinton, vem desenvolvendo esforços para convencer o Congresso dos EUA que uma combinação adequada do EITC com um aumento moderado do salário mínimo levarão a maioria dos norte-americanos para cima da linha de pobreza. Através dessa política o governo tenta combinar uma política de pleno emprego com o aumento da renda dos trabalhadores.
Os EUA, nos anos 90, conseguiram estruturar um sistema fiscal que apresentou avanços significativos no sentido da progressividade e da promoção de maior igualdade. Para isso, os dois principais instrumentos foram a expansão do EITC e o aumento da alíquota máxima do imposto de renda de 28% para 43% sobre os altos rendimentos.
Gradativamente, em quase todos os países desenvolvidos, a decisão sobre o salário mínimo vem sendo acompanhada da discussão sobre formas de imposto de renda negativo e/ou de renda mínima garantida. Assim, na Grã-Bretanha, a pessoa com 18 anos ou mais, cuja renda não atinge um certo nível, tem direito a um complemento de renda, ou "income support".
Na França, em seus territórios ultramares, como a Guiana, e na Espanha, além do salário mínimo, desde 1988, há a Renda Mínima de Inserção, que garante um complemento de renda a todos os de 25 anos ou mais, cuja renda esteja abaixo de certo patamar. Em Quebec, no Canadá, desde 1988, institui-se a lei sobre a segurança de renda.
Para se garantir que haja estabilidade de preços, desenvolvimento saudável com justiça social no Brasil, faz-se necessário que a reforma tributária venha assegurar que as pessoas e as empresas se deparem com um sistema de impostos bastante racional, que venha a dar funcionalidade à economia, transparência no que se arrecada e gasta, e que envolva um sentido de progressividade pelo qual os que têm mais venham a contribuir mais para que o Estado possa realizar com eficiência suas funções fundamentais.
Essa progressividade deveria incluir a restituição de todos os impostos diretos e indiretos aos cidadãos que ganhem menos que o necessário para a sobrevivência de sua família, através de um crédito fiscal ou imposto de renda negativo. Não há como se cobrar de quem não tem o suficiente para si mesmo, uma vez que a sociedade até hoje não lhe deu oportunidade.
Aprovado pelo Senado Federal, em dezembro de 1991, projeto nesse sentido tramita na Câmara dos Deputados com o parecer favorável do deputado Germano Rigotto (PMDB-RS). Estudo de viabilidade e aperfeiçoamento do projeto está sendo realizado por grupo interministerial coordenado pelo secretário de Política Econômica, José Roberto Mendonça de Barros.
As centrais sindicais posicionaram-se a favor da instituição da renda mínima garantida, assim como estão propugnando pela recuperação do valor real do salário mínimo e pela sanção da lei recém-aprovada.
Seria de se esperar que o governo tomasse uma decisão a respeito em diálogo com a sociedade e o Congresso. Como o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso votou a favor enquanto senador e diversos membros da equipe econômica, como Pedro Malan, Pérsio Arida, Luiz Carlos Bresser Pereira, já se pronunciaram a favor do PGRM, por que se demora a votar a matéria na Câmara? Será que há barreiras em função da proposta vir de um senador do PT?
Certamente este não seria um argumento cabível, pois para uma proposição hoje aceita por extraordinário espectro de economistas e partidos, a expectativa normal é a de que haja um procedimento semelhante ao que o próprio PT teve ao votar favoravelmente à urgência e ao mérito do projeto que estendia o prazo do seguro-desemprego de quatro para sete meses, do deputado José Serra (PSDB), em 1994. Trata-se de projeto consistente com os objetivos do PGRM.
Dar prioridade à sua aprovação e implementação será um passo efetivo para se combater a miséria no país. Uma maneira de contribuir para que menos pessoas só encontrem na marginalidade a alternativa de sobrevivência. A renda mínima, conforme reconheceu Antonio Delfim Netto em seu artigo na Folha de 18/02, sem dúvida, vai aumentar o bem-estar dos indivíduos, responsáveis por suas famílias, que terão a liberdade de escolher no que gastar. Decorrerá de decisão da sociedade de adotar princípio básico de solidariedade e defesa da cidadania.

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