São Paulo, quinta-feira, 16 de fevereiro de 1995
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Obra frágil aspira a critérios da perenidade

IVAN CLAUDIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A julgar pela série de lamúrias desfiadas por Nuno Ramos no texto "É absurdo condenar a fragilidade da obra" (publicado na edição de 11 de fevereiro da Ilustrada), o artista corre o risco de, a alguns meses de sua estréia na Bienal de Veneza, perder o posto de "enfant terrible" para se tornar o mais novo "enfant gâté" das artes plásticas nacionais.
Escrito em resposta à reportagem "Estética aos pedaços" (publicada na edição de 8 de fevereiro da "IstoÉ"), seu artigo me acusa de não conhecer ou compreender seu trabalho, sobre o qual, segundo ele, teria descarregado "uma bateria de rancor e xingamentos". Em seguida, como um hábil desconstrutor de textos alheios, faz uma rápida montagem de excertos de minha reportagem, dotando-a de caráter leviano e irresponsável.
Entre as várias evidências às quais Nuno se esquivou em sua resposta, uma é imperdoável. Ele não escreveu uma linha sequer a respeito da deterioração de um painel de sua autoria, atualmente em exposição em um corredor do Museu de Arte de Brasília (MAB). Foi esse fato que instigou a reportagem e foi a essa cena, estampada em foto de inequívoca veracidade, que me referi como "de horror".
Em 1992, quando assistiu perplexo a profusão obscena, nas primeiras páginas dos jornais, de registros fotográficos da chacina do Carandiru, Nuno criou uma obra raivosa, a instalação "111", trazida a público no ano seguinte.
Diante da indignada resposta do artista publicada na Ilustrada, arrisco cometer uma heresia. A lenta agonia de uma obra de arte não é nada diante de uma tragédia social como foi a chacina. Mas, para um artista, a visão de sua obra revelada em flagrante estado de decomposição e sobre a qual ele não tem mais domínio causa horror parecido.
Não vou me deter sobre o humor inofensivo contido na comparação feita por mim a seu painel, quando lhe aproximei à "criatura do dr. Frankenstein". Nem ao fato de ter-lhe apelidado de "Painel Sujão", provocações vistas por Nuno como agressivas.
Segundo a museóloga Fátima Guimarães, do MAB, a obra em questão, do acervo do museu, "é frágil do ponto de vista técnico e foi concebida para não durar". Ela foi retirada do salão de exposições e instalada no corredor por estar sujando o piso do museu com tinta, parafina e outros materiais.
A condição orgânica do trabalho de Nuno sempre foi apontada pelos mais fiéis exegetas de sua obra. Mas, ao que parece, o artista e parcela das artes plásticas a qual ele pertence rejeitam qualquer aproximação que fuja do já estabelecido sobre suas produções. Preferem se satisfazer com as elogiosas apresentações de catálogos. Esta autofagia e entredevoramento da produção artística e da reflexão crítica se mostra tão viciada que põe em dúvida a suposta "vitalidade ímpar" da arte contemporânea brasileira apontada por Nuno.
Na elaboração da reportagem "Estética aos pedaços" não foram ouvidos apenas um crítico, um restaurador e dois colecionadores "de opiniões duvidosas", mas um espectro representativo de pessoas do meio, todas anuentes com a pertinência das questões levantadas. Em especial, os colecionadores de obras de Nuno se dizem conhecedores da fragilidade dos trabalhos, apreciam-lhes e dispensam todos os cuidados em sua conservação.
A intenção da reportagem, ao apontar alguns casos de obras contemporâneas deterioradas, foi abrir uma discussão que parece não preocupar o suficiente o ambiente artístico nacional.
Ao contrário do que Nuno afirma, não foi elidido na reportagem "o completo descaso (...) de nossas instituições (...) para com a produção brasileira". Está dito bem claro na reportagem que "no Brasil (...) os museus, cada vez mais empobrecidos, não estão suficientemente aparelhados para cumprir o papel institucional de conservar trabalhos que exigem cuidados especiais".
Nuno aponta a violência, o descaso oficial e "a solidão difícil de descrever" (!!!) aos quais os artistas estão relegados, mas não foi capaz de sustentar a pretendida radicalidade de sua poética.
É claro que ele não é um técnico do breu e do sal, materiais de que se compõe a instalação "Mácula", parcialmente danificada na última Bienal de São Paulo. Se ela não se esfacelou, pouco importa. O que está em jogo é a nova relação instaurada por uma obra cujo vigor deveria nascer justamente de sua desafiadora fragilidade, queira Nuno ou não, um dos "assuntos" de seu trabalho.
Como se vê, Nuno é vítima não de xingamentos, preconceitos e confusões, mas de seus próprios paradoxos. Produz objetos que, como ele reclama, exigem uma nova abordagem da noção técnica e, no entanto, negam uma durabilidade necessária a conferir-lhes um valor de troca.
O artista, porém, aspira aos mesmos critérios tradicionais que regulam o mercado e a conservação dos bens artísticos. Ao proceder assim Nuno não está sendo "artista forte o bastante" —a expressão é dele— para levar às últimas consequências a audácia e a angústia de criar objetos que fulguram sem aura, de costas voltadas à perenidade.

IVAN CLÁUDIO, 38, é editor-assistente de cultura da revista "IstoÉ"

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