São Paulo, sábado, 18 de fevereiro de 1995
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A pasteurização da cultura

ARNALDO KISKIER

A fala presidencial foi sintomática. Se o presidente Fernando Henrique Cardoso usou os canais de rádio e televisão paga significar o seu natural apreço pela educação, temos motivos de sobra para acreditar que ele dará mesmo prioridade ao tema. Vem aí uma cruzada de grande importância.
Algumas considerações, no entanto, precisam ser desde logo feitas, a fim de que tudo isso não acabe frustrando a expectativa do povo brasileiro. Por exemplo, a questão do livro didático. São 58 milhões de exemplares comprados pela FAE sem a garantia de continuidade e com uma absoluta regularidade de entrega às escolas públicas: sempre com atraso. Isso atrapalha o planejamento do trabalho nas escolas. Por outro lado, são livros de uma meia dúzia de editoras, sempre as mesmas, o que pode estar representando um processo de pasteurização da cultura brasileira, e que o intelectual Fernando Henrique Cardoso certamente não deseja.
Armou-se no Brasil uma verdadeira pantomina pedagógica: fingiu-se que os professores é que escolhiam os livros, o que garantidamente não ocorreu. Muitos interesses se plantaram nesse sistema e por isso ninguém pode estranhar que o Tribunal de Contas da União tenha determinado a punição de antigos responsáveis. Se ficar tudo na mesma, novas irregularidades ocorrerão. Os dirigentes da FAE e do MEC precisam estar atentos a isso.
Outro aspecto da fala presidencial que nos assustou refere-se à idéia de um currículo básico. O presidente falou em "matérias que cada escola terá de ensinar obrigatoriamente, em todos os Estados, de Norte a Sul do Brasil". Ficamos preocupados se há algum desejo de estabelecer um currículo único, com a desculpa de facilitar transferências de alunos de uma unidade para outra da federação. A idéia não contemplaria as diversidades regionais do país —e seria um verdadeiro desastre. Vamos aguardar uma explicitação do assunto.
Elogios merece a campanha de valorização das tecnologias educacionais. O ensino à distância parece que será definitivamente incorporado aos nossos hábitos, o que já vem tarde. Lembro que, em 1979, recém-empossado na Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, lancei a campanha "Um rádio e uma televisão em cada escola", com a dedicada colaboração da professora Maria Eugenia Stein, então diretora do Centro de Tecnologias Educacionais da SEE-AJ. Foi um sucesso, pois em muitas escolas do interior fluminense, que visitei sistematicamente, os aparelhos eram elementos auxiliares de primeira ordem. Nunca se pretendeu, é claro, substituir os professores, mas apoiar as suas ações de ensino-aprendizagem.
Se o tema agora volta —e com toda força— só nos resta estimar que tenha continuidade. A utopia de uma antena parabólica em cada uma das 200 mil escolas (não seriam 250 mil?) também merece uma análise cuidadosa, a fim de que não promova um banho de frustrações. Uma escola com antena parabólica, porque conseguiu sabe-se lá como, e outra ao lado sem o recurso diabolicamente eficaz. Isso poderá provocar uma estranha dicotomia na educação brasileira, dividida entre os "parabólicos" e os "renegados". São considerações para a reflexão dos que têm hoje a responsabilidade de soerguer um sistema falido de educação, mas que apresenta infinitas virtualidades.

ARNALDO NISKIER, 59, escritor e jornalista, é professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro da Academia Brasileira de Letras.

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