São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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A realidade que aparece

As primeiras dificuldades, e em particular a queda recordista do seu prestígio na opinião pública, foram suficientes para fazer o presidente Fernando Henrique perder o controle. O que já lhe trouxe mais resultados negativos e, a perdurar como os indícios levam a crer, mais dificuldades e desgastes trará depressa.
A operação para recuperar prestígio, com lances meramente propagandísticos, mostra-se desastrosa. O primeiro episódio, da pretensa aulinha na Bahia, deixou tão evidente o seu sentido demagógico e ridículo, que a gaiatice foi o que sobressaiu até no jornalismo de chapa oficial. Seus dois desdobramentos, em que os pobres meninos foram substituídos por pobres professores, confrontaram o sensível presidente com manifestações de protesto perturbadoras. O lance seguinte, a primeira e palavrosa entrevista coletiva, só deixou como saldo público o embatucamento irado do presidente, à simples questão de como viveria se ganhasse o atual salário mínimo.
São várias, é claro, as razões do desnorteamento de Fernando Henrique. Dentre elas, uma que não se expôs aos leitores-espectadores, embora os vitimasse em grande parte. Vem de longe esta causa, dos tempos em que o então sociólogo Fernando Henrique estabelecia contato mais constante com os jornalistas. Despejava-lhes palavras e expressões do sociologuês de manual, a propósito de qualquer assunto. Eram "pressões exógenas", "parâmetros", "estamentos", "raízes endógenas", e tome do desgraçado "palatável" pra lá e pra cá. Os jornalistas de São Paulo ficavam boquiabertos. Não entendiam nada, mas ficavam. No dia seguinte, quem não entendia nada eram os leitores. Mas leitor, como você sabe, não é uma preocupação maior do jornalismo brasileiro.
Fernando Henrique às vezes escrevia ou falava de coisas importantes, que eram temas correntes entre acadêmicos e alguns intelectuais, como a função que teriam os militares em um Estado moderno. Os jornalistas, encantados, atribuiam-lhe a exclusividade do tema, como hoje fazem com a criação da "teoria da dependência", de tantos outros autores. Houve um período, se posso ser desculpado por esta lembrança, em que o vocabulário do articulismo político era o sociologuês nada "palatável" de Fernando Henrique. Mas não só na seção política: enchente do Tietê, aumento do gás, epidemia de sarampo —vamos ouvir o Fernando Henrique. Antes mesmo que o sociólogo virasse político, também o jornalismo de Brasília já o adotara e incorporara. De sua chegada a Brasília para cá, é desnecessário rememorar.
O próprio Fernando Henrique disse que o seu maior defeito é a vaidade, e põe vaidade nisso. Não, é pouco. Põe mais ainda. Aí está o campo apropriado para o que veio a acontecer: entre o Fernando Henrique que se ofertava permanentemente aos jornalistas e a pobreza jornalística que se deslumbrava com ele, estabeleceu-se uma cumplicidade com efeitos dos dois lados. Os jornalistas passaram a difundir uma imagem ideal de Fernando Henrique, poupando-o de tudo o que a contrariasse. E o próprio Fernando Henrique, com boas razões "endógenas" e "exógenas" para isso, ou razões internas e externas, passou a considerar-se imune a qualquer crítica, a qualquer discordância.
Inexiste, a rigor, uma disposição crítica dos meios de comunicação para com Fernando Henrique. Mas o presidente e a maior parte do governo têm sido decepcionantes, considerada a expectativa que Fernando Henrique e os meios de comunicação difundiram, em razão daquela mesma cumplicidade deformante e ilusionista. A tal ponto que nem o jornalismo de chapa oficial pode deixar de fazer alguma abordagem crítica, uma ou outra vez e ao menos para não ficar mal com os leitores-espectadores, sempre mais inteligentes e rápidos do que os jornalistas.
Fernando Henrique não está preparado para ser visto de maneira contrária à idéia que faz de si. Desnorteia-se, irrita-se, já entrou nos insultos como reação constante. Deve estar sofrendo, e isso dá pena. Mas não é uma pena que seja assim: é, um pouquinho da realidade não adulterada.

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