São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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É imprudente seguir a receita mexicana

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alguns leitores têm estranhado a ausência de um artigo de minha autoria sobre a reforma tributária. Confesso uma certa impotência de fazê-lo com a profundidade que julgo necessária, em face da inexistência de definição do governo federal acerca das linhas mestras desta reforma e do seu detalhamento.
Certo que tenho lido avidamente os jornais, procurando entender que tipo de reforma está o governo a gestar. Vejo que há democraticamente uma ampla discussão interna. O ministro do Planejamento fala uma coisa, o ministro da Fazenda outra.
Às vezes, a reportagem menciona algum vazamento de informação, fornecida por técnico que, prudentemente, mantem-se no anonimato, pois a hora não é conveniente para exposição concorrente com vários ministros que, de tão ágeis e ligeiros, uniram o pensamento à ação, perdão, o pensamento à palavra. Vocalizam imediatamente o que estão pensando.
Devo reconhecer que foi o mais significativo avanço na tão decantada virtude pública da transparência. Pena que, algumas vezes, a criatividade existente nessas opiniões e propostas deixa a todos perplexos ou temerosos, pelo ineditismo e pelo salto mortal que representam em relação aos temas na ordem do dia nacional, além do conteúdo apocalíptico do que vaticinam.
Algumas vezes pensei que estavam os componentes maiores do governo a praticar uma técnica de "brain storming" em público. De outra feita, considerei que estaria um ministro mais ousado a realizar um strip-tease público do seu pensamento mais íntimo acerca de matéria de sua área de atuação.
Quando a audácia da formulação do ministro adquiria a índole histriônica ou mesmo catastrófica, devo confessar ter achado que se tratava de uma manifestação da porra-louquice nacional. Afinal, o homem reflete a circunstância.
Na minha procura de dados e informações, fui a uma fonte à qual confiro credibilidade e obtive o esclarecimento de que a inovação é a criação do IVA (Imposto Sobre o Valor Agregado). E ouvi a entusiástica informação: "o país vai se modernizar, vai adotar o modelo vitorioso na União Européia e em toda a América Latina. E não haverá mais guerra fiscal entre os Estados da Federação. Assim, não mais ocorrerão os leilões de isenções e incentivos em que cada Estado oferece mais do que o outro, buscando atrair os investimentos de novos empreendimentos para o seu território".
A legislação disciplinatória do IVA, para evitar discrepâncias e falta de unidade no plano nacional, seria da competência da União. Para evitar que se pensasse estar a União com a fome e o apetite do leão, na proposição dessa fórmula, ela de boa-fé ofereceria o IPI, para fundir-se com o ICMS.
Alegria total de alguns sonegadores do IPI. Nos últimos tempos, certos industriais aumentaram o consumo do Lexotan, de forma a obter tranquilidade, embora artificial, em face da possibilidade de a Receita Federal lhes descobrir as traquinagens contábeis e autuá-los cobrando o imposto sonegado, carregado das multas, com a decorrente representação à Procuradoria Geral da República, para que ela fizesse a denúncia à Justiça Federal da prática do crime de sonegação.
A esperança ascendeu-se nos corações e mentes desses industriais, com a perspectiva de extinção do IPI. Rei morto, rei posto. Acabado o IPI, sonham, morre também o ímpeto fiscalizador da Receita Federal a respeito do que tenha ocorrido, no passado, com relação a tal imposto. É a esperança alimentada pela experiência.
E a arrecadação advinda do IVA seria distribuída, fraternalmente, entre a União, Estados e Distrito Federal.
Tanto se promete reformar a Constituição, que o processo mental dos formuladores desta reforma parece que vai se esquentando, com tal intensidade, que o seu desenvolvimento rompe as barreiras do constitucionalmente possível.
Os limites estão no artigo 60, parágrafo 4º da Constituição Federal: as chamadas cláusulas pétreas. Pétreas, pois tudo o mais pode ser alterado, exceto o que elas dispõem. Uma das cláusulas pétreas, insuscetíveis de modificação, é exatamente a Federação.
Parece-me temerário extinguir o ICMS, principal fonte de arrecadação dos Estados e, em verdade, o mais importante imposto do país em arrecadação global, sem se examinar, com cuidado, o dano que isso causa à Federação.
Alguns críticos da Federação afirmam que ela é artificial no país. Cópia da Federação americana. Ledo engano. A história da fase imperial brasileira está prenha de insurgências violentas contra a centralização do poder político. Confederação do Equador, Guerra dos Farrapos, Balaiada e Sabinada são exemplos de que a nossa Federação não foi inspiração intelectual de gênios da raça, mas conquista feita, como se diz, "na raça". Na briga.
Eis, aí, a razão de a Federação ter surgido contemporânea da própria República.
O federalismo, na sua projeção fiscal, consiste essencialmente na atribuição de competência aos seus membros, no caso os Estados, para instituir tributos que propiciem a sua independência financeira.
Ademais, a autonomia política implica possa o Estado baixar as leis necessárias à disciplinação desses tributos. Lei federal dispondo sobre a completa regulação desse imposto não se coaduna com o federalismo, princípio basilar da estruturação do Estado brasileiro.
A representante do Estado do Rio de Janeiro na Câmara Federal, a deputada e professora Maria da Conceição Tavares, tem criticado, com fundamento, uma convergência da política governamental brasileira com o chamado "Consenso de Washington".
Não sei se tal arranjo dispõe a respeito do IVA. Pode ser que sim. O que sei, pois presenciei em diversos seminários internacionais, é que a receita do Fundo Monetário Internacional é a de que o IVA deve ser um imposto federal, com partilha de sua arrecadação entre os Estados e a União.
A receita do FMI está desandando no México. Não é prudente segui-la no Brasil. Quando o porre é homérico, o efeito tequila pode ser devastador. E, ao que tudo indica, a UTI do FMI já está esgotando os seus recursos no México, para salvar os que ali especularam.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, advogado, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

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