São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995 |
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Proposta de flexibilização e interesse público
LUCIANO COUTINHO
Com efeito, muito embora as instâncias regulatórias existam formalmente, na prática essa função foi encampada pelas grandes empresas estatais. Estas deveriam ser apenas executoras de diretrizes e políticas fixadas pelas instituições de regulação. A dificuldade de fiscalização e o corporativismo excessivo das estatais são subprodutos desta ausência de entidades regulatórias fortes, independentes, capazes de representar e fazer valer os interesses da sociedade. A proposta de flexibilização supõe a manutenção do monopólio público, separando-o do monopólio da empresa estatal, que perderia vigência com a abertura à participação privada, na forma da lei. Mas o monopólio público pressupõe que uma entidade exerça o poder de contratação ou de concessão e represente o interesse da coletividade e do cidadão. O mais sério risco do processo de flexibilização é exatamente o de não se definir claramente como, por quem e sob que condições o monopólio público será exercido. Esse risco não deve ser subestimado. Nos países desenvolvidos, a onda neoliberal dos anos 80 deixou sequelas desastrosas em vários casos em que a desregulamentação foi imprevidente ou excessiva. A falta de regras levou ao abuso do poder econômico por parte dos novos protagonistas privados (especialmente em setores de monopólio natural (*), seja pela prática de tarifas elevadas ou pelo suprimento deficiente dos serviços nas áreas de baixa renda ou remotas, de reduzida rentabilidade. Em outros casos, a desregulamentação levou à concorrência predatória e ruinosa, da qual o exemplo mais conspícuo foi o da aviação comercial nos EUA. Por conta destas consequências, ressurgiu com clareza a necessidade de regulação e, a partir dos anos 90, fortaleceram-se as agências encarregadas de zelar pela racionalidade, preços, qualidade, planejamento de longo prazo, direitos dos usuários e cidadãos. No caso brasileiro, pretender a flexibilização dos monopólios sem a criação de entidades regulatórias fortes e tecnicamente competentes seria uma rematada insensatez, cujas consequências poderão ser extremamente onerosas para a sociedade e para o país. É relevante ressaltar, porém, as novas características da regulação nos anos 90. Não se ressuscitou, simplesmente, as velhas regras ossificadas. Almejou-se um estilo de regulação que, ao invés de se opor às forças de mercado, buscou utilizá-las para obter resultados que anteriormente eram implementados de forma burocrática. Essa regulação pró-competitiva ganhou expressão especial nos setores de monopólio natural. No passado, concessionárias públicas recebiam um monopólio por um longo período de tempo, com a obrigação de prover amplamente os serviços sob determinadas condições e com tarifas reguladas. A experiência demonstrou que, frequentemente, esse tipo de monopólio não-contestado tende a tolerar ineficiências, emprego redundante, estagnação tecnológica e investimento insuficiente. Além desses inconvenientes, nos últimos anos novas tecnologias modificaram o substrato de escala ou de individibilidade, que constituía o monopólio natural em alguns setores, notadamente nos segmentos de telefonia e de telecomunicações. No entanto, se se deseja que um serviço seja suprido de forma ampla e acessível aos usuários (especialmente os de baixa renda ou em locais remotos) é indispensável a regulação pública. Além disso, a ausência de regulamentação tende a desorganizar os setores. Imagine, por exemplo, que uma operadora de novos serviços de telefonia sem fio (celular ou de outras tecnologias) pudesse utilizar a rede telefônica básica sem custos. Nesse caso, o novo protagonista poderia concorrer deslealmente, com preços baixos, às custas da operadora estatal, que precisa manter a onerosa base instalada de centrais, cabos e equipamentos. Por outro lado, se o monopólio for mantido na forma convencional, a oferta dos novos serviços pode ser truncada ou retardada. Para conciliar esses dois objetivos contraditórios (i.e. universalização dos serviços básicos e oferta competitiva de serviços sofisticados) é essencial dispor de uma regulação inteligente que obrigue ao compartilhamento de custos e responsabilidades e, ao mesmo tempo, permita a competição, com supervisão das tarifas. Será sempre necessário que a autoridade arbitre soluções de compromisso para alcançar resultados superiores que, de resto, jamais poderiam ser obtidos pelo livre mercado ou pela estatização absoluta. Neoliberais e céticos acusarão que qualquer tentativa de regular o interesse público será viciada. Segundo eles, os reguladores serão vulneráveis às pressões de interesses especiais ou de grupos corporativistas, desejosos de capturar oportunidades e manter privilégios. Mas é evidente que essas mesmas pressões "corruptoras" também operarão num ambiente de desregulamentação, com o agravante de graves riscos para os usuários em matéria de preços e condições dos serviços. É, portanto, absolutamente falso o dilema entre regular ou não regular. O desafio é criar um sistema regulatório democrático, isento, independente e tecnicamente preparado, que encoraje a competição e o dinamismo tecnológico e, ao mesmo tempo, resguarde amplamente o interesse público. Enquanto isso não for compreendido e empreendido, serão graves os riscos de derrogar os monopólios das empresas estatais, com a ilusória expectativa de que as "forças de mercado" organizarão os sistemas de utilidade pública. (*) O "monopólio natural" é um conceito da teoria econômica, significando um monopólio intrínseco a uma atividade ou serviço que, em função de sua elevada escala, integração e indivisibilidade, torna impossível a existência econômica de outros supridores que não aquele que explora a atividade/serviço numa determinada área ou região. São exemplos a geração e distribuição de energia, água e saneamento, gás e telefonia. Texto Anterior: Para governo, a defasagem do câmbio é de 11,6% Próximo Texto: Curto prazo rende pouco mais Índice |
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