São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Nos passos de Mário

TELÊ ANCONA LOPEZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Brasil.../ Como será o Brasil?..." No poema em que Manuel Bandeira tece variações sobre o nome, a pergunta encontra, ali mesmo, uma resposta pronta, verso em caixa alta: "MÁRIO DE ANDRADE".
O anúncio no ônibus nos conta que o nome foi parar até em escola pra criança; os retratos, a charge, as caricaturas continuam pelos jornais na assiduidade que vigia os vivos; o noticiário e a crítica ocupam-se dos livros dele e sobre ele; muitos o estudam na sala de aula e em projetos de pós-graduação; todo mundo (mesmo os que nem tocaram no livro) se refere a Macunaíma.
Em caras grandes, queixudas, caixa d'óculos, vemos sósias. Numa terra que não cultiva o rito da correspondência, as pessoas o descobrem —coisa surpreendente!— nas cartas editadas; suposições sobre como agiria ele nesta ou naquela situação, perante uma exposição, um disco, um novo romance, tudo isso reconhece uma presença. Dessas presenças maiores que ocorrem nas veias do cotidiano. Faz 50 anos morreu Mário de Andrade e ele perdura na multiplicação do polígrafo e do poeta "trezentos, trezentos-e-cincoenta", em seus traços de homem e intelectual brasileiro de primeira plana; vive, plural, mais ainda, no trabalho da crítica.
No dizer de Antonio Candido, grandes nomes da literatura de um país são aqueles que continuam crescendo e se afirmando 50 anos depois de sua morte. Assim se pode entender Mário, em 1995, com justiça plena, sem as exclamações do panegírico.
As reedições contínuas, os textos adotados no ensino médio e pedidos no vestibular, os novos títulos descobertos, traduções que viajam Europa, França e Japão, as cartas e a ficção, levadas ao teatro, ao cinema, à TV —ao Carnaval!— ao desenho, à pintura, consagram um autor que, por se inscrever tão fundamente na literatura e na cultura de seu país, atravessa fronteiras, "concorrendo" com a contribuição nossa para "o contingente universal", se nos apropriarmos de suas palavras sobre o alcance maior de ser brasileiro.

Caminhos
Mário de Andrade, celebrado como o pai da moderna cultura do Brasil, além do modernista da década de 20, do poeta da Paulicéia, do "Rito do Irmão Pequeno", d'"A Meditação sobre o Tietê", do autor do conhecidíssimo "Macunaíma", de contos e romances, destaca-se como crítico fecundo e historiador voltado para a literatura, a música, as artes plásticas; como musicólogo advogando o nacionalismo; como estudioso e pesquisador do folclore e da cultura popular.
Cronista na grande imprensa, mostra rara captação do sentimento do cotidiano e a capacidade de partilhar o saber numa espécie de conversa gostosa, de sofisticada simplicidade. Professor no conservatório, prolonga suas aulas no volumoso "Compêndio" e na "Pequena História da Música". Lecionando no Rio, estrutura o "Curso de Filosofia e História da Arte".
Intelectual dono de um projeto nacional popular, contribui para firmar dois momentos importantes na política cultural da Segunda República: as diretivas do Departamento de Cultura do município de São Paulo e do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Tem mais! O fotógrafo de belas experiências, o colecionador de arte, o homem que lê enriquecendo as páginas com vasta marginália e, o que hoje chama especial atenção, o correspondente dialogando com todos aqueles que o procuraram, sabe-se lá quantos. Nessas cartas tão vivas, onde vibra a discussão sobre temas capitais da cultura brasileira, Mário se desnuda, "fingidor" à Pessoa, construindo uma autobiografia.
Aconselhando tanto os amigos do porte de Drummond como os jovens escritores que lhe endereçam textos e perplexidades, suas cartas ganham muitas vezes peso e ritmo de um romance de formação. Tomadas por ele como o espaço para pensar o poema ou a ficção a que se dedica, complementam o percurso da criação e da escrita.
A crítica sobre Mário de Andrade toma os muitos caminhos do polígrafo, sendo naturalmente de grande extensão. Conquistou análises fundamentais nos artigos em periódicos desde a década de 20, intensificando-se a partir dos anos 70, quando o número de livros ganha regularidade. Um balanço bibliográfico mostrará que não existe ano em que não saiam novos títulos.
Nessa vertente, o primeiro estudo de grande porte, o "Roteiro de Macunaíma", de Manuel Cavalcanti Proença, em 1955, sem o recurso, com que agora contamos, de manuscritos, da biblioteca e da marginália do autor, detectou as matrizes da rapsódia do herói da nossa gente. Proença, pioneiro, escreveu vários artigos e soube desenvolver, com maestria, a questão da fala brasileira empregada na experiência modernizadora e nacionalista do prosador.
A assinatura de Manuel Bandeira acompanha pontualmente, em jornais e revistas, a publicação da maior parte dos livros do amigo, oferecendo, por exemplo, em 1927, sobre "Amar, Verbo Intransitivo" e "Belazarte", estudos que merecem ser recuperados.
Artigos de alto pique, da lavra de críticos da mesma geração do escritor —Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Sérgio Milliet, Jorge de Lima, Plínio Barreto, Bastide e outros—, esquecidos em jornais e revistas de difícil acesso, têm muito o que dizer ao leitor de nossos dias. Necessitam ser juntados a outros, dos anos 40 e 50, da geração que sucedeu Mário, como os da musicóloga Oneyda Alvarenga, os de Florestan Fernandes, Proença e Antonio Candido, artigos belos, igualmente esclarecedores. É preciso que circulem largamente, compondo um panorama, em coletâneas conforme aquelas, excelentes, em que Sonia Brayner difunde a crítica de Bandeira e outros escritores.
Na Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Assis, Diléa Zanotto Manfio e bolsistas do CNPq recolhem atualmente, em jornais e revistas, tudo que a crítica produziu sobre Mário de Andrade, desde o primeiro livro dele, em 1917, até hoje. Essa pesquisa renderá, sem dúvida, uma cuidadosa seleta.
Enquanto se espera, pode-se recomendar a leitura de Oneyda ("Sonora Política"), Antonio Candido (depoimentos cheios de análise e o antológico "Mário de Andrade - Poesias", de "Clima"), Milliet, Bastide, Florestan ("Mário de Andrade e o Folclore Brasileiro"). Acham-se na edição fac-similar de 1989 (iniciativa de Déa Ribeiro Fenelon) do nº 106 da "Revista do Arquivo Municipal", de São Paulo, 1946, ano do primeiro aniversário da morte, e na "Revista do Instituto de Estudos Brasileiros", nº 36, comemorativo do centenário de 1993.
A crítica conta, portanto, com muitos nomes e significativas interpretações em escritos breves e ensaios alentados. Gilda de Mello e Souza, a grande estudiosa de Mário de Andrade, abraça, com perfeita acuidade, a poesia, o romance, os princípios da poética, os passos do crítico de arte ou o olhar do colecionador; na qualidade da prima que viveu sob o mesmo teto na r. Lopes Chaves, historia a vida, lembra acontecimentos. Dá gosto ler Gilda. Os "marianos", aliás, na grande maioria, escrevem bem, demonstrando cultura, imaginação crítica e, o que é essencial... graça. Claro que existem estudos bem alicerçados, porém pesadões. Poucos, felizmente. E besteiras em letra de forma, que disso ninguém escapa.
Quem quiser, pois, encontrar na crítica as diferentes facetas de Mário de Andrade, deve buscar Oneyda, Proença, Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza. Desta, "O Tupi e o Alaúde", explorando "Macunaíma", é livro que exige pronta reedição.
Como ele, os importantes ensaios de Victor Knoll ("Paciente Arlequinada") e de João Luiz Machado Lafetá ("Figuração da Intimidade"), focalizando a poesia, precisam voltar às livrarias. Deve ler José Miguel Wisnik, que se debruça sobre a poesia e a música; Jorge Coli e Flávia Toni esmiuçando o musicólogo; Maria Lúcia Godoy, Elizabeth Abdanur, Dalton Sala, Marta Rossetti Batista, José Augusto Avancini, Joan Dassin, Roberto Akira Goto, Carlos Berriel, Soffiatti lidando com ideologia, propostas do SPHAN, do historiador e do crítico das artes plásticas; Matilde Demétrio, Marcos Antonio de Moraes, preocupados com a correspondência.
Não pode deixar de conhecer o que escreveram Haroldo de Campos, Silviano Santiago, Bosi (dono da bela idéia da bricolagem em "Macunaíma"), Mário Chamie (que aproxima Mário a Bakhtine), Davi Arrigucci Jr., Mário Gonzales, Raul Antelo, Maria Augusta Fonseca, Ivone Daré Rabello, Maria Clara Paro, Raquel I. Bueno. E se inteirar de que, nos Estados Unidos, na Itália, na França e na República Tcheca, mariodeandradiam Richard Morse, Ettore Finazzi-Agr•, Pierre Rivas, Sarka Grauova.

Inéditos e edições
Morrendo de repente, com apenas 52 anos, Mário deixou pesquisas praticamente prontas para o prelo, bem como textos de redação interrompida.
Oneyda Alvarenga, sua discípula, musicóloga a quem ele confiou a Discoteca Municipal de São Paulo, foi a primeira a preparar inéditos com rigor, conseguindo pôr de pé a vasta obra do pesquisador do folclore brasileiro.
A partir de 1976, através de edições fidedignas, críticas e genéticas, associadas à exploração de documentos de arquivo, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) torna-se um centro irradiador de metodologia. Detendo-se nos manuscritos, o IEB-USP comemorou o centenário de nascimento do escritor com as edições de texto fiel de "Vida Literária", do "Curso de Filosofia e História da Arte" e da "Introdução à Estética Musical", realizadas respectivamente por Sonia Sachs, Claudete Kronbauer e Flávia Toni. Flávia, a pesquisadora que, ao lado de Oneyda, editou o "Dicionário Musical Brasileiro" de Mário em 1989, responde também pelo texto genético da "Enciclopédia Brasileira", e Claudete, por aquele de "A Arte Religiosa no Brasil", análise de juventude sobre o Aleijadinho.
A "Vida do Cantador", na edição crítica de Raimunda de Brito Batista, resgata a história de Chico Antônio, cantador do entusiasmo do Turista Aprendiz", guardada em rodapé da "Folha da Manhã" de 1943. Nessa comemoração, o texto genético e crítico de "Balança, Trombeta e Battleship", conto de "enorme lirismo", no dizer do autor, foi a parte que me coube.
Na festa do IEB entrou a revelação do "Mário de Andrade Fotógrafo e Turista Aprendiz", livro feito por Diana Mindlin, Sérgio Gregório, Ana Maria Paulino, Washington Racy e por mim, assim como o de cartões postais da correspondência não-lacrada, organizado por Marco Antonio de Moraes que, aliás, acaba de aprontar o volume das cartas a Murilo Rubião.

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