São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Mário escreve a Murilo

São Paulo, 27 dez. 1943
Murilo,
acabo de receber o "Alfredo", e respondo já por causa da sua consulta de agora. Si a carta sair um bocado confusa nas explicações e muito rápida e sem ordem na argumentação, me perdoe, estou pra lá de trabalho.
Dos três trabalhos que você propõe pra antologia, eu escolhia "O Mágico", acho o mais perfeito de todos, com maior unidade no sustentar o diapasão da... fantasia. (Vamos para todos os efeitos, nesta carta, chamar de "fantasia", o que você mesmo numa das suas cartas ficou sem saber como chamar, si "surrealismo, si "simbolismo", a que se poderia acrescentar "liberdade subconsciente", "alegorismo" etc. Fica aqui "fantasia".). A pequena vulgaridade que apontei, de se tratar dum funcionário público se sustenta muito bem, que afinal é uma tradição, vox populi. O "Alfredo" também gostei bem, mas nele entra bastante o tal problema da necessidade de uma escolha muito controlada e severa de elementos, nos contos, criados sob o signo da fantasia. É que, o ineditismo, o irrealismo é tão sistemático, que a todo instante certos elementos parecem banais. Isto se observa especialmente, dos três contos propostos, no "Marina, a Intangível". Confesso que não consegui me interessar muito por este conto, e ainda menos pelo da "Eunice e as flores amarelas". Nesta a escolha dos elementos briga de tal forma com a fantasia e suas consequências, que quase todos os elementos ficam por assim dizer banais. De resto, mostrei este conto, não só a Gilda, como você pedia, mas a outras pessoas gradas também. E as observações mais ou menos coincidiram, sinão com as mesmas palavras e idéias, sempre na mesma ordem de pensamento. Ou quase sempre, para não exagerar.
Bem, mas aqui interfere um problema, como diria? confessional? isso: confessional. É que eu fico sempre numa enorme dificuldade de dar opinião pra esse gênero de criação em prosa a que estou denominando aqui de baseada no princípio da fantasia. O próprio Kafka, confesso a você que frequentemente me deixa numa insatisfação danada. Si, como você também tem esse dom, ele consegue me impor o extra-natural de tal forma que, como já lhe falei na carta anterior, o problema do irreal, passada a surpresa inicial, deixa de existir, não raro me parece que a fantasia não é suficientemente fantasia, não corresponde ao total confisco da lógica realística (não é bem isto) que ela pressupõe, pra atingir uma ultra-lógica, dentro da qual, no entanto, interfere sempre uma lógica realista muito modesta e honesta. (...) Você nunca imagine que estou defendendo princípios estéticos em que tenho confiança ou imagino que são normas imprescindíveis. São quase que apenas palpites.
Pois o meu palpite principal é mesmo esse: os elementos que você utiliza, cria, inventa, na sua fantasia, frequentemente não me convencem, não por serem irreais, mas por não serem suficientemente irreais, suficientemente inesperados, é melhor dizer. Mas eu seria o mais desonesto dos sujeitos si tivesse certeza. Não tenho certeza nenhuma do que eu sinto. Apenas estou lhe propondo um problema e uma dúvida. Mas quem tem de resolver é você, e um problema, mesmo sendo a mais, como sei que é pra você, nunca fez mal.
Engraçado, Aurélia acaba de me telefonar, pra saber de minha saúde. Manda lembranças de vocês. E eu o meu abraço muito amigo.
Mário de Andrade

Trecho de carta inédita, incluída no livro das correspondências entre Mário de Andrade e Murilo Rubião, a ser editado este ano, com organização de Marcos Antonio de Moraes

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