São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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O homem que se inventou

Marlon Brando transformou tudo em que tocou

HAROLD BRODKEY

O Marlon Brando que vemos hoje na TV é uma figura previsível: um homem obeso, vulgar e desinteressante, que de súbito torna-se passional e inteligente; nesses momentos, seu rosto de jovem ressurge em meio à gordura.
Em sua última aparição no programa "Larry King Live", King tratou-o com deferência, mas mesmo assim foi alvo de suas palhaçadas. O convidado troçou do mestre de cerimônias por estar este suando sob as luzes do estúdio, e a certa altura chegou mesmo a puxar-lhe o nariz. A toda hora colocava os pés gordos e descalços num escabelo visível às câmaras. Ao final do programa, Brando —o eterno poderoso chefão— beijou King nos lábios, um gesto de mafioso cujo significado é que o pretendente comportou-se bem.
Brando foi repulsivo? De modo geral, foi. Porém os trechos de seus melhores momentos no cinema, exibidos antes e depois dos intervalos comerciais do programa, disseram mais a seu respeito do que ele próprio. Quando Brando despontou como astro, nos anos 40, espectadores e críticos perceberam com rapidez seu talento para existir no momento presente. Tirando um ou outro comediante (como Buster Keaton, por exemplo), isto jamais ocorrera.
O jeito de Brando falar, quase sem abrir a boca, era visto como "autêntico", como se seu ímpeto de falar ocorresse no momento. Suas explosões brutais de raiva, seus rompantes de vaidade no palco eram encarados pelos críticos, pretensiosos ou não, como dotados de uma vitalidade jamais vista. E embora muitos críticos não gostassem dele, logo de início Brando foi aclamado pelo público.
De modo mais explícito do que o cinema e a leitura, o teatro apresenta uma série de momentos numa sequência determinada. Estes momentos têm uma realidade incontestável, mas são o grau em que eles nos relatam uma história e o modo como a estilizam que configuram o trabalho do ator. A busca do real, a tentativa consciente de atingir o realismo, já existia havia mais de um século quando Brando surgiu; pode-se traçar uma linha razoavelmente nítida de Balzac a Einstein. Normam Mailer, Leonard Bernstein, o fotógrafo Richard Avedon e muitos outros —o poeta John Berryman, por exemplo, os artistas plásticos Robert Rauschenberg e Jasper Johns, e o bailarino e coreógrafo Paul Taylor —todos surgiram na mesma época, e trabalhavam dentro de um contexto de realismo extremo. Pode-se dizer que nadavam na contracorrente do modernismo. Destes artistas, Brando foi o que o público apreendeu de modo mais direto, e talvez o mais influente.
Brando escreveu uma autobiografia de quase 500 páginas intitulada "Brando: canções que minha mãe me ensinou", com a ajuda do escritor Robert Lindsey. No programa de Larry King, Brando afirmou ter recebido cinco milhões de dólares para escrever o livro, ao qual ele sempre se referia como "um exercício de liberdade".
Quase ao mesmo tempo, uma biografia reveladora, escrita na terceira pessoa, chamada "Brando" (publicada pela Hyperion), com mais de mil páginas, foi lançada por Peter Manso. O livro de Manso só dá para ser lido em doses homeopáticas. A meu ver, o autor não tem uma visão coerente de Brando. Por outro lado, apresenta uma abundância de dados melancólicos e desconcertantes.
Já a autobiografia é um livro bom de se ler, e para uma pessoa da minha idade, que foi afetada pelo trabalho de Brando, é difícil de largar —porém é uma obra autocentrada que, sob todos os aspectos em relação aos quais tenho conhecimento, não condiz com os fatos. Podemos encará-la como mentirosa, pois é mais um desempenho de Brando, coisa que o livro de Manso não é. Brando é ator, e como tal sempre ganhou a vida mentindo. Quase todos concordam que Brando era "autêntico" em seu trabalho. É comum dizer-se que a vida de Brando foi uma verdadeira morte em vida, um horror. Seu livro afirma que isto não é verdade.
Seja como for, o fato é que, quanto mais mentia, mais Brando transmitia sensação de verdade. O teórico de teatro russo Stanislavski, responsável pela direção das peças de Tchekhov, utiliza a imagem da tradução para caracterizar o processo por meio do qual o ator transforma algo contido nele em efeito teatral e verdade estética. Brando foi aluno de Stella Adler, que havia estudado por pouco tempo com Stanislavski, e de Elia Kazan, que foi influenciado pelo teórico russo.
É difícil falar sobre o trabalho de Brando no teatro, pois a cada noite sua representação se modificava, e não há ninguém que tenha assistido a todas elas. Em retrospecto, pode-se afirmar com razoável certeza que seu trabalho admitia interrupções —que seus desempenhos eram de uma fragilidade infinita. Lembro-me que no final dos anos 40, quando eu estava na faculdade, a época em que começaram a ouvir-se fofocas sobre Brando, dizia-se que ele era um ator que só rendia o máximo em ocasiões imprevisíveis. E estava tendo início uma época em que os cantores de ópera e músicos eram encarados como burros de carga.
Brando ou roubava as cenas em que aparecia, era imperioso, ou bem ele era apenas sexy. De vez em quando, Brando tomava um papel e fazia sua tradução final, definitiva —sempre continha uma falha, porém tornava-se clássica. Mas minha impressão era a de que Brando só representava a si próprio, numa epopéia autobiográfica sobre uma alma americana. E —fosse por suas raízes célticas (ele diz que suas origens são irlandesas), fosse por alguma outra razão intangível —de saída ele parecia estar condenado ao inferno, ser irredimível. Brando trabalhava com base em seu próprio ser, como todos os atores, porém o fazia de modo diferente. Extraía algo de vulnerável e desprotegido das peças de Tennessee Williams e da atmosfera, da realidade à sua volta. E ainda que ele esteja dizendo a verdade quando afirma que seu trabalho como ator não é autobiográfico, num certo sentido, profundo e importante, a interpretação de Brando é autobiográfica, sim, levando-se em conta o que ela contém de improvisação e de desrespeito por tudo que foi feito antes no campo da representação.
A estrutura de seu livro indica que, como escritor, Brando tem certo talento indisciplinado. E não tem recursos que lhe permitam utilizar a linguagem para desenvolver uma argumentação coerente —a linha melódica do sentido. Talvez o ator precise, em seu trabalho, ao mesmo tempo expor-se e ocultar-se, mas isto é algo que ele não consegue fazer por muito tempo na escrita.
Neste livro, que desperta no leitor muito mais lembranças associadas a Marlon Brando que o livro de Manso, a primeira e última coisa que se sente —e se sente com surpresa— é que Brando dá a impressão de ter existido quase por todo o sempre como a única figura de todo o universo, apesar de ter tido uma família, de não ter sido órfão. Ele afirma que, num certo sentido, foi órfão, e acredtio nele. Brando era o novo solipsista, puro e bárbaro, que existia —mesmo ao representar, mesmo naquela parte da história que está além da palavra— acima, ao lado, abaixo e atrás das palavras. Era figura e texto, um animal temporal, tão inteligente que parecia demoníaco, embora permanecesse irresistível.
Vejo-me a mim mesmo no livro de Brando, pois ele foi a primeira estrela do sexo masculino que surgiu em minha vida adulta. Brando ensinou-me alguma coisa a respeito da masculinidade; o que seus melhores trabalhos abordam e corporificam é o mundo masculino. Brando afirma que seu pai gostava de prostitutas. Era um homem que bebia muito (não tanto quanto a mãe de Brando, que era alcoólatra), e é provável que maltratasse o filho. Num dos improvisos semi-autobiográficos de "O Último Tango", Brando relata o típico episódio de humilhação imposta por um pai a seu filho: Brando teria sido obrigado a ir a uma festa com os sapatos sujos de bosta de vaca, porque seu pai o forçou a ir ordenhar uma vaca quando já estava vestido para sair. Podemos imaginar a ambição feroz e irada do filho, sua vontade de escapar à humilhação e alçar-se aos píncaros da glória.
Mas Brando consegue dizer coisas como ator que não consegue expressar com clareza ao escrever. A certa altura ele afirma: " Há algo de curioso no poder de uma estrela de cinema; eu jamais o pedi; foram as pessoas que o entregaram a mim" — como se fosse possível conquistar uma fala tal sem qualquer desejo de sua parte.
A mistura de verdade e mentira, o choque que o leitor experimenta ao se ver diante de uma afirmativa retórica que não pode ser verdadeira, ocorre vez após vez no livro. Embora não tenha terminado o secundário, Brando sempre afirma ter lido muito e com certa seriedade. Porém seu desempenho como ator não é cerebral —em sua essência, não é nem mesmo verbal. Ele se diz intuitivo, ou basicamente intuitivo. Então porque insiste em bancar o cerebral?
Alguma vez Brando já fez papel de intelectual? Alguma vez já trabalhou num filme que tivesse um personagem intelectual? Poderia ele ter interpretado George em "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?" de Albee? Poderia agora desempenhar o papel de Próspero em "A Tempestade" de Shakespeare? Ele fez um filme semi-intelectual extremamente famoso, "O Último Tango em Paris", e fez também um filme intelectual abertamente político, "Queimada"; e não estava de modo algum fora do lugar ou constrangido em nenhum dos dois. O que havia de assustador nestes papéis era um certo toque vampiresco, como se Brando estivesse alimentando sua imaginação com pedaços da carne e consciência dos diretores.
Esta prática de roubar ou tomar emprestadas partes de personalidades desenvolvidas, muitas vezes com malícia ou crueldade, é também infantil e enternecedora até certo ponto —o tipo da coisa que um órfão aprende a ser para conseguir um teto. E quando afirmo que as coisas que Brando roubava eram defeitos e podridões, que suas caracterizações eram montagens de lixo, estou inserindo-o entre os talentos dos anos 50, entre os artistas da época. Brando o afirma de modo não-explícito: ele é uma espécie de figura descartável, sem valor —é o que diz. (Porém ele nega isto quando age como ativista político, quando faz o bem; mas o bem neste mundo é normalmente defeituoso.)
Uma parte da persona artística de Brando é a imagem de vigarista, estuprador, valentão, assassino, louco. Ele afirma que isto são personagens. Ou seja: que estes tipos não são traços de uma única figura central. O mentiroso que diz a verdade de certo modo, ao mesmo tempo em que age como um homem de verdade foi o papel mais comum dos atores americanos nos anos 30, antes de Marlon Brando. Ele não foi o primeiro desta nova geração de atores. O primeiro foi Montgomery Clift (que propunha sensibilidade e perfil de homem da classe média; era uma espécie de Leslie Howard americano).
Mas a moralidade dos personagens de Clift —tal como suas boas maneiras— nunca estava em dúvida. A moralidade questionável de Brando, a moralidade questionável de sua arte, o que nela havia de grafitagem —tudo isso era novo.
Também eram novos os olhos de Brando; inteligentes, andróginos, sutilmente ameaçadores, e também de algum modo suaves e fracos, olhos de sátiro e soldado nazista americano.
Em 1951, quando foi feita a versão cinematográfica de "Um Bonde Chamado Desejo", já se comentava que suas nádegas eram gordas demais (quando queria criticar o desempenho de Brando, Montgomery clift dizia que havia percebido sua bunda gorda —naquele trabalho o ator não havia exercido sua magia).
A meu ver, Brando é um ator que inventou a si próprio e que desempenha sempre o mesmo personagem, que representa as diferentes facetas de sua personalidade como personagens diferentes. Sob diversos aspectos, ele era uma espécie de soldado desconhecido —que não morreu, porém cuja alma ficou morta, como resultado da Segunda Guerra Mundial. Numa carta transcrita no livro de Brando, Tennessee Williams revela ter percebido esta qualidade logo de início. Escreveu à sua agente, Audrey Wood:
"Nem sei expressar o quanto me sinto aliviado por termos encontrado em Brando um Stanley caído do céu. (...) Ele humaniza o caráter de Stanley na medida em que passa a ser a brutalidade ou a insensibilidade da juventude, e não a perplexidade do homem mais velho. (...) Um novo valor emerge da leitura de Brando, que é a melhor que já ouvi. Ele parecia já ter criado um personagem com dimensão, o tipo de personalidade que a guerra gerou entre os ex-combatentes".
Brando afirma que, na visista que fez a Williams com o fim de ler o papel de Stanley, dormiu com Williams - ao contrário do que se pensava em Nova York. A maior parte das peças que Williams escreveu depois de "Um Bonde" me dão a impressão de conter papéis escritos para Brando, mas o ator jamais trabalhou em outra peça sua (porém atuou no filme "Vidas em Fuga" - a adaptação feita por Williams de sua peça "Orpheus descending").
A espiritualidade americana contida em Brando - sua encarnação de uma pessoa a quem devemos algo, sua nova abordagem do pai proletário do país - foi uma invenção cultural importante.

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