São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Uma epopéia grega no Caribe

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ainda que o Prêmio Nobel nem sempre possa ser tomada como padrão de excelência literária, não se lhe pode negar o alto valor promocional. Veja-se o caso ainda recente de Derek Walcott. Por mais temerária que fosse, uma editora brasileira jamais se abalançaria a comprar os direitos e mandar traduzir "Omeros", o mais ambicioso poema desse obscuro poeta das Antilhas inglesas.
Entretanto, o Nobel de literatura com que Walcott foi agraciado, em 1992, serviu para tirá-lo da obscuridade e possibilitar que, em tradução, as perto de trezentas páginas de texto cerrado de "Omeros" fossem lidas por um público maior que o reduzido círculo de aficionados com acesso à edição original em inglês. Nesse público maior estão incluídos os leitores brasileiros, a cujo alcance a Companhia das Letras acaba de pôr a criteriosa tradução de "Omeros" feita por Paulo Vizioli.
No prefácio a sua tradução, oferece-nos Vizioli, acerca do poeta e do poema, informações infinitamente mais substanciosas e pertinentes do que a meia dúzia de linhas que a nossa imprensa —sempre tão pressurosa em dar cobertura ao rock mais imbecil quão em fazer vista grossa para tudo que diga respeito à verdadeira cultura— dignou-se conceder-lhe quando da atribuição do Nobel.
Com os seus perto de 5.000 tercetos, "Omeros" é mais um caso probante daquela nostalgia da épica que desde cedo temperou a obsessão da modernidade com a poesia pura. Ao expungir o poema de quanto cheirasse a prosaico, a fim de elevar-lhe ao máximo o poder de sugestividade, os corifeus da poesia pura só fizeram pôr em prática as idéias postuladas por Edgar Allan Poe em "O Princípio Poético", com o que institucionalizaram a medida do poema curto.
As tentativas de criar uma épica modernista que, sem abrir mão dos recursos de concentração de sentido desenvolvidos pela prática simbolista dessa medida de eleição, lograsse combiná-los consubstancialmente à narração, à descrição, à digressão e a outros recursos próprios do poema longo, sempre deram resultados discutíveis. É o que se pode ver em exemplos como o dos "Cantos", de Ezra Pound, do "Paterson", de William Carlos William, da "Odisséia", de Nikos Kazantzákis, ou da "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima.
Ao estigma do discutível não foge tampouco a épica intentada por Walcott em "Omeros". A modernidade da sua dicção se patenteia desde logo no uso reiterado da metáfora de impacto, da elipse sugestiva e do símbolo plurívoco; do corte e flash-back cinematográficos e do foco narrativo múltiplo; da alusão e colagem intertextual e do auto-questionamento metalinguístico. Mas esses recursos de concentração de sentido convivem pouco à vontade, as mais das vezes, com a repetitividade das descrições paisagísticas e com o enfraquecimento da tensão dramática por digressões como a dos Livros 4 e 5.
"Omeros" é a grafia grega do nome de Homero, proto e arquipoeta cuja figura surge repetidas vezes ao longo do poema, ora à guisa de evocação literária, ora em carne em osso, ora sob a forma de avatares como Sete Mares, o velho pescador cego.
A ação dramática de "Omeros" está ambientada na ilha de Saint Lucia e seus três protagonistas, que descendem dos escravos negros para lá levados no começo da colonização, ostentam nomes de protagonistas da "Ilíada".
Os pescadores Achille e Hector, outrora amigos, se desentendem por uma questão de somenos e seu desentendimento agrava-se quando a bela mulata Helen deixa Achille para ir viver com Hector. Helen foi empregada dos Plunketts, um casal de ingleses residentes na ilha, simbolicamente identificados com Ulisses e Penélope a certa altura do poema.
Completa o elenco de personagens de primeiro plano, além da taverneira, sibila e mãe-de-santo Ma Kilman, o ex-pescador Philoctete, rebaixado a plantador de inhame por causa de uma fétida e aparentemente incurável chaga que lhe fôra infligida no tornozelo pela ponta de uma âncora.
Nem a fútil querela entre Achille e Hector, nem a pacífica e "desacidentada" existência dos demais personagens seriam matéria digna de uma poema épico, se as conotações mítico-simbólicas de que se revestem no contexto da narrativa não os elevassem à categoria de figurações ricas de sentido.
Outrossim, a verdadeira matéria épica de "Omeros" são o passado e o presente da ilha de Saint Lucia. Passado que remonta às viagens de Colombo, que foi quem batizou a ilha com o nome da mártir siracusiana mais tarde santificada como protetora dos cegos; já nisso transluz um primeiro vínculo simbólico com a cegueira de Homero.
Mas o sucesso verdadeiramente épico da história de Saint Lucia foi a batalha naval das Santas, na qual a frota do almirante Rodney venceu a de De Grasse, com o que a ilha passou de colônia francesa a inglesa.
Sobre a história de Saint Lucia ama debruçar-se o major Plunkett, cuja imaginação confunde a beleza tropical e selvagem da ilha com a beleza mulata e arrogante de Helen, pelo que não lhe é difícil comparar a batalha das Santas à guerra de Tróia e ver em Helen, ou numa Helena qualquer, a causa ou pretexto dessas e de tantas outras guerras.
Isto traz à lembrança uma antiga tradição divulgada pelo poeta Estesícoro (século 7 a.C.), de que Helena jamais fôra raptada por Páris nem levada para Tróia; lá estivera apenas um fantasma ou simulacro seu, fabricado pelos deuses para incitar os gregos a luta. A tal versão recorreu modernamente Giorgos Seféris, em seu poema "Helena", para com ela simbolizar as ficções ideológicas e os embustes interesseiros que têm levado os homens a se matarem uns aos outros no correr dos séculos.
Em "Omeros", o major Plunkett —militar reformado que planejara percorrer o império britânico para apreciar-lhe a derrocada histórica, mas que acabou se fixando em Saint Lucia, a que via como um novo Éden antes da queda— é uma das figurações do tema da culpa/remorso (em seu caso, do colonialismo inglês, a cujos interesses servira como militar).
Mas há outras figurações do mesmo tema no poema de Walcott. O seu Philoctete é um duplo moderno do Filoctetes da "Ilíada", o qual, punido pelos deuses com uma ferida de odor insuportável, porque revelou o lugar onde Héracles fora incinerado, só pôde curar-se graças o sumo de uma planta receitada pelo centauro Quíron.
Também a ferida da Philoctete cicatriza após um banho curativo preparado por Ma Kilman com a flor e as folhas de uma planta trazida da África por um andorinhão. Essa cura milagrosa é tida pelo próprio poeta (cujas intervenções são marcadas, na dicção da narrativa, por uma mudança da terceira para a primeira pessoa do singular) como "a experiência de uma ilha que se curava a si própria" do esquecimento de suas raízes africanas, recuperando assim a condição edênica.
Mas a principal figuração da culpa pós-edênica e de seu resgate pela catarse conscientizadora surge num dos mais belo episódios do poema, aquele em que Achille remonta em sonho à aldeia dos seus antepassados, do outro lado do oceano, no Golfo de Benin, e lá reencontra o pai Afolabe, que o censura pela perda do seu nome africano e pela desmemória da fala da tribo.
Achille lhe explica que "no mundo de onde eu venho, aceitamos os sons que nos foram dados" sem cuidar de saber-lhes o significado, ao que Afolabe retruca que, se ele "está contente de não saber o que significam nossos nomes", então, "filho sem nome", não passa do "fantasma de um nome".
Avulta nesta passagem crucial o papel fundante da nomeação, em que a poesia tem a sua própria razão de ser, do vínculo indissolúvel entre idioma e identidade cultural. A perda da língua de origem e a imposição ao negro escravo da língua de seus senhores europeus alienou-o de suas origens e desnaturou-o espiritualmente. Só tomando consciência desse desnaturamento e de suas causas poderá o negro ou mestiço antilhano recuperar a perdida identidade cultural.
Essa a leitura que inculca o episódio de Ma Kilman orando em transe "na língua das formigas e de sua avó" (as formigas são símbolo dos escravos negros), enquanto colhe a flor e as folhas que vão curar a ferida vergonhosa de Philoctete, com quem o próprio poeta se identifica: "Sinto a vergonha, o autodesprezo, escorrendo de todos os nossos corpos (...) não há diferença alguma entre mim e Philoctete."
Essa assunção expiatória da vergonha e autodesprezo do personagem pelo seu criador se faz acompanhar de um compromisso de engajamento literário. Referindo-se às mulheres negras que vira na infância carregando carvão para os navios, o fantasma do pai do poeta diz que as primeiras rimas do filho nasceram do "dístico daqueles pés que se multiplicam" (dístico, a estrofe de dois versos; pé no significado secundário de unidade métrica do verso), pelo que o "dever que você tem (...) é (...) dar a esses pés uma voz".
O poeta cumpre tal dever dando voz nos seus versos, ainda que sob o signo da culpa e da vergonha, aos deuses da África —Xangô, Erzulie, Ogum, Dambala— e à nostalgia da língua e dos usos tribais que ficaram esquecidos no outro lado do oceano.
A incongruência dos nomes desses deuses e desses usos "bárbaros" —para usar a designação lidimamente grega— com as referências homéricas, que pontilham desde seu título a narração e a simbólica de Omeros, não há de passar despercebida ao leitor mais sensível. Ela aponta, de resto, para a irredutível duplicidade da mestiçagem cultural, onde o sincretismo aparece não como uma síntese dialética, mas como uma precária acomodação de alteridades.
Dessa irredutibilidade se dá conta o próprio poeta ao perguntar-se, em certo passo, quando iria "deixar de ouvir a Guerra de Tróia em dois pescadores aos xingos no empório de Ma Kilman" para poder entrar enfim "naquela luz além da metáfora". Ainda que ele não consiga ver a plenitude da luz, consegue ter dela um intenso vislumbre no sonho africano de Achille, sem dúvida o momento epifânico de Omeros.
Na introdução que escreveu para a sua tradução do poema de Walcott, Paulo Vizioli sustenta que Omeros supera as demais tentativas épicas da modernidade porque, em vez de recorrer a mitos nacionais, recorre a mitos universais, no caso extraídos da "prestigiosa" fonte homérica. Tenho para mim que o núcleo da significatividade de "Omeros" está antes no contraste do caráter confessadamente "livresco" das suas alusões homéricas com a "sinceridade" emocional de sua nostalgia africana. É por via desse contraste que a arte exuberante de Derek Walcott alcança exprimir, isomorficamente, tanto a problemática pessoal dele quanto da condição mestiça (e colonial) da ilha caribenha em que nasceu e de que é o grande bardo.
As aspas aqui postas em "livresco" e "sinceridade" visam acentuar que tais palavras devem ser lidas não como juízos de valor de um crítico extratextual, mas como ênfases intratextuais que balisam a própria semântica de Omeros.

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