São Paulo, segunda-feira, 20 de fevereiro de 1995
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A grande civilização

FLORESTAN FERNANDES

Em todo o mundo grandes capitalistas e setores da alta classe média estão em festa. Prevalece o regozijo de que o fim da Guerra Fria significa a destruição do socialismo revolucionário e do comunismo. Novos conceitos, como globalização, neoliberalismo, estabilidade financeira com desenvolvimento e cidadania responsável, fazem a cabeça dos mandões do establishment. São mentiras ultraconvencionais, que dissociam corações e mentes das duras realidades e dos dramas morais crescentes do capitalismo oligopolista na sua terceira e mais aterradora manifestação.
Parece que o inimigo do capital mora na epiderme de sua forma de produção, fora da subalternização dos mais fracos e da distribuição da riqueza. "Extinto o comunismo", a normalidade capitalista exibe, como seus atributos, a realização da felicidade e a consagração da paz. Os tecnocratas, recrutados nas universidades mais avançadas, substituem os intelectuais tradicionais e ocupam as posições estratégicas de intelectuais orgânicos da ordem. O Estado é reduzido a instrumento da globalização econômica, do congelamento da sociedade de classes e da expulsão dos pobres para periferias internas, com a decapitação da pequena burguesia e suas ambições. Não nos defrontamos com o produto da imaginação de Orwell. Mas com algo irremediavelmente real.
Adorno e Horkheimer não teriam onde enfiar os pressupostos teóricos do fascismo potencial, pois impera, por trás da fachada democrática, uma plutocracia fascista. Max Weber, com a plêiade de cientistas sociais que compartilham de suas previsões pessimistas, paira solto no ar. Mesmo Marx e Engels —com a representação das contradições que desagregam a economia capitalista, as classes, as relações de classes e o Estado burguês, indicando novas rotas de evolução— ficam aquém do concreto.
O fim da maior civilização que já existiu nasce de forças incontroláveis, simultaneamente intrínsecas e extrínsecas. Não se pode mais acreditar, como Schumpeter, que o foco problemático terminal do capitalismo seria função de seu êxito. Pondo-se de lado visões norte-americanas e eurocêntricas, a perspectiva macro-histórica sugere uma autodissolução prolongada e dolorosa.
A concepção de apogeu e queda é compartilhada por Claude Lévi-Strauss. Ele testemunha com amargura ("Saudades do Brasil", pp. 18-19): "Transformada em sua própria vítima, é a vez da civilização ocidental sentir-se ameaçada. Ela destruiu, no passado, inumeráveis culturas cuja diversidade fazia a riqueza da humanidade. Detentora, no que lhe concerne, de uma fração dessa riqueza coletiva, enfraquecida por perigos vindos de fora e de dentro, ela deixa esquecer-se ou destruir-se sua herança que, tanto como as outras, merecia ser amada e respeitada". Sucessivos progressos devoram-se a si mesmos "a uma velocidade assustadora". O que esperam as elites de nossas classes dominantes ao mergulhar o Brasil em tal cataclisma?

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