São Paulo, segunda-feira, 20 de fevereiro de 1995
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Ser mulher e deputada

MARTA SUPLICY

É interessante como a presença e a maneira de ser das mulheres no Parlamento confundem os homens. As últimas semanas forneceram uma boa amostra sobre como a imprensa trata as deputadas e como alguns deputados tratam as colegas.
A revista "Veja", por exemplo, publica fotografias de duas deputadas e uma senadora, sem que o texto correspondente traga uma linha sequer a respeito da competência que as levou a obter vitória nas urnas. Merecem destaque as pernas de uma e um julgamento sobre a beleza da senadora negra.
Não bastasse este machismo da revista, fomos brindadas também com uma gracinha cometida por um deputado enciumado com o espaço reservado pela mídia às suas colegas. O ressentido chama a deputada Esther Grossi de "aquela louca" e comenta a meu respeito que "ela só fica mostrando as pernas".
Seria engraçado, não fosse patético. O deputado teria razão em sentir-se incomodado com uma imprensa que privilegia detalhes em detrimento do conteúdo. Sente-se esquecido e diminuído por não ter o seu trabalho reconhecido. No entanto, em lugar de destacar o valor de suas colegas e buscar o reconhecimento pessoal por meio de seus próprios méritos, ele tenta desqualificá-la com grosseria.
Se o deputado tivesse o cuidado de informar-se antes de emitir opiniões e julgamentos, saberia que a "louca" Esther Grossi é doutora pela Universidade de Paris. Quanto a mim, posso compreender que ele se oponha às bandeiras que tenho levantado nacionalmente nos últimos anos: direitos da mulher, orientação sexual na escola, planejamento familiar, prevenção e atendimento aos portadores do vírus HIV, legalização do aborto... Mas não venha me dizer que só tenho pernas.
Respira-se um ar machista, patriarcal e arcaico no Congresso. O ambiente é fálico, a força é do macho. As mulheres são, em sua maioria, classificadas ou como competentes (mas que poderiam ser homens, tal a sua feminilidade) ou como fêmeas (no sentido e uso animal). Mesmo as femininas que já mostraram competência no Parlamento são quase sempre lembradas mais por sua beleza e "allure" do que pelo seu trabalho.
Não me vem à memória a leitura de qualquer matéria jornalística exaltando o charme do deputado X em detrimento de qualquer ação que ele estivesse executando ou, muito menos, comentando o volume de seu bíceps. Lembro-me de um radialista que, durante a campanha eleitoral, interrompeu uma entrevista para comentar —"que olhos lindos a senhora tem!" Após alguns segundos de estupefação, retruquei: "E se fosse o senador, o senhor mencionaria o seu lindo nariz aquilino?"
O Congresso ainda não aprendeu a conviver com mulheres competentes e femininas. A mídia tem a obrigação de refletir sobre sua responsabilidade na transformação da mulher de objeto sexual em ser humano capaz de oferecer contribuições em todas as áreas.
Como escreveu Marshall McLuhan, "é impossível compreender as mudanças sociais e culturais se não se conhece o funcionamento dos meios de comunicação". Seria útil, portanto, cobrar maior transparência ao processo editorial destes meios, que nem sempre têm oferecido contribuições à altura das transformações sociais necessárias ao país —particularmente no que diz respeito à mulher.
Que a imprensa forneça informações sérias sobre o trabalho das parlamentares. Esta postura de respeito para com a mulher parlamentar ampliará nas novas gerações uma visão do papel da mulher e poderá estimular uma atuação maior das mulheres neste campo, ainda de tão difícil acesso para o sexo feminino.
Que estejamos de mãos dadas para a conquista deste mundo novo, no qual homens e mulheres, mantendo suas diferenças, possam ocupar os mesmos espaços com a mesma dignidade.

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