São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Personagens duelam contra a história em "A Rainha Margot"

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

"A Rainha Margot" não é uma reconstituição fiel da história da França na segunda metade do século 18. É, desde a origem, a adaptação de uma leitura romanesca da história, o livro homônimo de Alexandre Dumas.
Livro e filme narram as circunstâncias e consequências do casamento da princesa católica Margot (Isabelle Adjani) com o protestante Henri de Navarra (Daniel Auteuil), arranjado para pacificar os conflitos religiosos na França.
Pouco tempo depois do casamento, entretanto, 6.000 protestantes são assassinados em Paris, na Noite de São Bartolomeu (23 de agosto de 1572) —e o filme mostra o massacre com todas as tintas de uma orgia macabra.
A partir daí, quase tudo o que é planejado ou previsto nesta história sangrenta e infeliz resulta em seu contrário. O brilhante artifício utilizado por Dumas e preservado pelo cineasta Patrice Chéreau consistiu basicamente em ressaltar a dimensão trágica dos acontecimentos ao colocar em cena personagens vulneráveis, volúveis e cheios de arestas —"menores que a história", em suma.
O mecanismo cego da história enreda-os como os desígnios dos deuses enredavam os heróis trágicos gregos.
Contra esse mecanismo —que aponta invariavelmente para o desastre e a morte—, desenha-se aos poucos uma teia de afetos "acima da história": personagens supostamente inimigos (por religião, nação ou origem social) acabam por se aproximar, se amar, se aliar.
Margot torna-se solidária a seu odiado marido Henri; este vira o melhor amigo do rei Charles 9º (Jean-Hugues Anglade), cunhado instável que lhe matara os companheiros protestantes.
Amizade semelhante une o amante protestante de Margot, La Môle (Vincent Perez), ao católico com quem se batera num duelo de vida ou morte. Ambos, aliás, só sobrevivem graças aos cuidados de um carrasco profissional.
"A Rainha Margot" deve seu impacto essencialmente ao embate desigual entre esses personagens humanizados, pulsantes de vida, e seu destino histórico, do qual parecem sempre a ponto de escapar.
Mas a história é inexorável e cruel como a rainha-mãe, Catarina de Médicis (Virna Lisi, melhor atriz em Cannes), matriarca de uma família doentia e incestuosa. Figura pétrea, pálida como a personificação da morte, Catarina é a própria história, com seu pragmatismo, suas "razões de Estado", seus planos de longo prazo.
"A Rainha Margot" é a comprovação de que existe um cinemão europeu —mais precisamente francês— distinto do cinemão americano. Ambos são orientados para o espetáculo, mas enquanto Hollywood apaga todo vestígio de nuance psicológica ou problematização moral para fazer vingar seu maniqueísmo anti-humanista, o cinemão francês, pelo menos em casos como este, busca seu encanto justamente nas sutilezas e complexidades humanas.
Vencedor do prêmio do júri em Cannes, "A Rainha Margot" perde muito de seu exuberante impacto no vídeo, mas isso não é desculpa para deixar de vê-lo.

Vídeo: A Rainha Margot
Produção: França, 1994, 139 min.
Direção: Patrice Chéreau
Elenco: Isabelle Adjani, Daniel Auteuil, Jean-Hugues Anglade, Virna Lisi
Distribuição: Europa (tel. 011/579- 6522)

Texto Anterior: Horror nazista arquitetou idílio kitsch
Próximo Texto: Claude Chabrol apanha espectador na arapuca das imagens em 'Ciúme'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.