São Paulo, quinta-feira, 23 de fevereiro de 1995
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A história possível

CANDIDO MENDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre os nossos historiadores contemporâneos, Hélio Silva responde pela obra mais vasta. São quase 70 volumes, dando-nos um corte inteiro do Brasil, da Proclamação da República até o governo de João Figueiredo. A ele devemos especialmente essa construção do painel acessível e imediato que recorta, sem hiatos nem silêncios, fazendo chegar até nós quase um século de Brasil.
A obra tem como seu prumo a fixação de uma contemporaneidade específica. É o do Ciclo de Vargas. Seu recuo na história se fez pela busca dos pródromos da Aliança Liberal, que via como a única revolução acontecida após a queda da Monarquia. Retorna às raízes do tenentismo e publica como o primeiro volume o "Sangue nas Areias de Copacabana".
Devemos a Hélio a melhor câmera lenta sobre os 30, com um volume cobrindo cada biênio da década. Frisou repetidamente que não pretendia ser o biógrafo de Getúlio mas o expositor desses 25 anos críticos que gravitam em torno da grande tragédia cívica e fundadora de 54. A fascinação com o seu tempo só fez o autor aumentar o escrúpulo do trabalho e sua necessidade de perspectiva.
Previra e escrevera um volume introdutório, "A República não Esperou o Amanhecer", de originais perdidos e recuperados —dando-nos o pano de fundo da época. Mas a trajetória toda deste período viria a seguir, junto com os volumes sobre "Os Presidentes", escritos em colaboração com Maria Cecília Ribas Carneiro.
A amplitude da obra vai de par com a severidade e contenção de seu propósito, perfeitamente explicitadas. Não pretende a história militante, nem o ensaio sociológico, nem a interpretação, nem a obra de arte no que traz ao leitor. Cinge-se exclusivamente ao fato e seu suporte, obedecendo ao subtítulo geral da obra: "Documentos de História Contemporânea".
Mas o autor sabe o que lhe cabe na narrativa: dar a dramaticidade aos eventos que fluem pela sucessão orquestrada das cartas, manifestos, caricaturas, atas e artigos transcritos de jornais da época, envolvendo os protagonistas. O resultado é a imersão do leitor no seio do momento descrito, a que Hélio empresta uma especial tensão de contemporaneidade. Não é um trabalho de "scholar", nem também o de repórter, escrevendo desde os anos 20 em 18 jornais em todo o país, depois da iniciação no "Boa Noite".
A obra monumental é de um sexagenário que se aposenta da carreira de médico e do sucesso de sua clínica. Resulta da longa maturação do jornalista superexposto ao seu tempo no Rio metropolitano, como cronista parlamentar e até secretário da bancada paulista no Congresso, antes da vitória da Aliança Liberal. O propósito vingou após as reportagens retrospectivas na "Tribuna da Imprensa" dos anos 60 sobre a "Revolta do Terceiro RI na Praia Vermelha" e o "Assalto Verde ao Guanabara". Cunhou para seu trabalho o conceito de História Expositiva. Mas o denodo na defesa da absoluta necessidade de resistir à "toma de partido" na obra do historiador tinha como suporte compensatório o desassombro do cidadão.
Católico, de ostensiva militância, foi um dos fundadores da Democracia Cristã no após-guerra entre nós. Atuou na Associação Brasileira de Imprensa, confrontou o governo militar, assumindo a direção da Editora Civilização Brasileira, quando da prisão de seu presidente Enio Silveira.
Significativamente viu Hélio à época o papel essencial da história imediata e de sua preservação frente a regime de censura e auto-censura dos generais. O guardião por excelência dos documentos entregou-se mais que nunca à preservação de qualquer vestígio da contenda política, panfletos ou edições confiscadas de jornais ou depoimentos clandestinos que permitissem reconstituir o período fora dos silêncios e das deformações de usa versão oficial.
É quando funda, no Conjunto Universitário Candido Mendes o Centro da Memória Social Brasileira, também ao lado de Maria Cecília. Ao abrigo da instituição pôde Hélio organizar-se para a vastidão de novos projetos. Sob sua inspiração o Centro lançou-se ao levantamento da história social do país e das epopéias anônimas da organização dos serviços públicos, a começar pela História da Saúde e do início de nossa consciência sanitária.
A porfia do historiador é só uma das facetas desta vida entregue à mais determinada disciplina, emprestada a tantas metamorfoses do homem convivial, a surpreender-nos na última façanha. Bibliotecário do Jóquei Clube e oblato do Mosteiro de São Bento. Remador, protagonista exímio da metrópole carioca dos anos 40, dos passeios de automóvel decapotável numa Copacabana e Tijuca ainda bucólicas, o perfil do atleta, no contraponto entre o prumo de suas casimiras e a massa espessa das sobrancelhas. O desfecho da paixão pelo rigor levaria Hélio, mais que octogenário, à plenitude da vocação religiosa.
Seguiu para Serra Clara, a 40 quilômetros de Itajubá, fazendo-se beneditino como o Irmão Lucas, e assumindo as tarefas de faxina e cozinha no convento. Rematava a regra dos dias e das obras a que respondera antes pela fecundidade espantosa de sua produção.
Não quis o rumo interpretativo nem o perpassar das grandes sínteses sobre a história de seu tempo, mas a enorme coleta da memória que assegura a verossimilhança e o resgate dos fatos, na sua primeira humildade. Vestiu por aí mesmo o Brasil de hoje de seus referenciais como uma história contínua. E por ela, seus leitores se inserem, graças a Hélio, no presente brasileiro, como instintivamente apalpam no bolso a sua carteira de identidade.

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