São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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As angústias da vida clandestina

MARIA VICTORIA BENEVIDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assim eram enterrados em vala comum —como indigentes N.N.— os "desaparecidos" durante o regime militar, militantes clandestinos que, na imensa maioria das vezes, já eram perfeitamente conhecidos pelas forças policiais.
Essa era a violência final de um trágico elenco de ilegalidades e desumanidades, pois, mesmo na morte, o "inimigo" perdia o direito a sua identidade e suas famílias, o direito à verdade e ao enterro digno.
Passados 30 anos do golpe de 64, a brutalidade da repressão ainda não é inteiramente conhecida e denunciada. Cobertos de indignação e vergonha, os defensores dos direitos humanos —e todo democrata que se preze— ainda ouvem de autoridades, como o presidente FHC, que "é preciso esquecer o passado, para construir o futuro".
Ora, é justamente o não esquecimento dos "anos de chumbo" que nos permite lutar para que o horror não se repita. Já é por demais insuportável termos que conviver com a anistia a torturadores e assassinos, alguns até eleitos representantes do povo em cima da manipulação e da mentira.
Este primeiro livro da psicanalista Maria Auxiliadora Arantes, Pacto Re-velado, nos leva a rever o passado de trevas para entender um outro lado, até hoje inédito: a clandestinidade, daqueles que partiram para "a integração na produção", como opção de luta, e não como opção de fuga. E, a partir daí, entender como tal escolha, com preço físico e psíquico tão elevado, tornou possível a sobrevivência, e por tantos anos.
A autora trata a questão com recursos da análise teórica (a qual engloba desde Freud e Lou Salomé aos contemporâneos Piera Aulaugnier e Guy Rosolato) adequados à leitura de testemunhos, entendidos como "fragmentos ou recortes metapsicológicos". Quer saber, enfim, sob o dualismo princípio do prazer-princípio da realidade, como os clandestinos evitavam a falência psíquica, como buscavam, "no fundo da alma", elementos de satisfação mínima "para aquecer a nova vida".
A autora —também clandestina por 11 anos— está consciente da impossibilidade de fazer uma passagem linear do terreno político militante para o da psicanálise. Mas consegue dissecar o sentido daquela escolha num texto original, teoricamente preciso, historicamente informativo e humanamente envolvente.
A perda do nome e da identidade mais ampla —laços familiares e de amizade, referenciais de profissão, de estudos, de moradia, de todas as "raízes", enfim— era, durante a clandestinidade, um dos principais desafios. A situação exigia tanto o disfarce externo (copiar as roupas, os jeitos de viver dos camponeses ou dos operários), quanto o disfarce interno.
Este era o mais difícil, resolvido individualmente de acordo com as reservas psíquicas de cada um para enfrentar as perdas e tudo o mais decorrente da nova vida: a ansiedade, o isolamento, a subversão da noção de tempo, as frustrações, os momentos de dúvida e de fraqueza. Como fala um entrevistado, "o perigo mais comum é o desespero e a desagregação subjetiva".
Maria Auxiliadora presta um grande serviço: seu livro nos faz conhecer melhor nossa história recente, assim como as grandezas e misérias da natureza humana.

MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES é socióloga, professora da Faculdade de Educação da USP e diretora da Escola de Governo

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