São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os fantasmas do Ocidente

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A exigência de pureza no comportamento social, levada a extremos de fanatismo, pode gerar perigos insuspeitados, que incluem o genocídio e a tragédia na comunidade. Essa a tese central do novo livro de Bernard-Henry Lévy, La Pureté Dangereuse.
Lévy é leal com o leitor: manifesta claramente sua intenção de pensar e fazer pensar, suscitando questões e dando indicações preliminares de idéias, que apenas começa a desenvolver, sobre a democracia no mundo atual, sobretudo em face do integrismo.
Diz mais do desejo de enfrentar a "hipocondria generalizada" ou a "depressão nervosa coletiva" que foge do debate público das idéias. Desenvolve anotações ou teses, "deliberadamente prudentes, porque humildes", provocando discussão que outros possam retomar e desenvolver. Quer mais conflitos de opiniões, que provoca deliberadamente nas cinco partes que compõem a obra (o retorno da História, a vontade de pureza, doenças da civilização democrática, resposta à pergunta: "o que é o populismo?" e, por último, outra questão: "o que fazer?"). Antecipo, para meu leitor, o final pessimista de Lévy, quando confessa uma convicção à moda de Baudelaire: o mundo é incurável.
Defende o envolvimento do democrata no trabalho genuíno, autêntico, de reflexão sobre o ideal democrático, como forma de nos ajudar a resolver o enigma de povos que podem "cessar democraticamente de amar a democracia".
O democrata sonha com uma indefinida perfectibilidade da sociedade democrática. Para ele, a democracia jamais surge conceitualmente acabada, ante a subsistência do que Kant denomina a insociável sociabilidade, com sua permanente ameaça de cisão, defluente da tendência de entrar em sociedade e, ao mesmo tempo, de resistir a ela.
Integrismo, que se define, genericamente, como a doutrina que defende a totalidade de um sistema dado, é, para Lévy, palavra que desenha "a quimera que toma forma nos alambiques da nova Europa" e que, sob desculpa da pureza, ameaça a democracia.
Lévy, obviamente, não trata da pureza da alma, dos sentimentos, dos místicos e dos santos. Sob esse ângulo seria estapafúrdio que eu, você ou alguém fôssemos contra a pureza.
Ele questiona a pureza não-monástica, a pureza social, especialmente em política, que pretendeu promover, em todos os tempos (portanto, sem nenhuma novidade contemporânea), a socialização da ascese, sempre acompanhada de grandes calamidades, provocadora da morte e da infelicidade.
Dá exemplos deste século. No comunismo, a revolução cultural chinesa fez 10 milhões de mortos. No Cambodja, ofereceu 2 a 3 milhões de vidas em holocausto à pureza. O máximo da pureza foi o máximo da barbárie, como se viu no nazismo anti-semita da Alemanha ariana.
Dá exemplos antigos. A revolução francesa foi inspirada pela pureza, autorizando Saint-Just a dizer que "uma nação não se regenera senão sobre montões de cadáveres". O catolicismo teve seus impulsos de pureza sanguinolenta, com os cátaros (hereges do século 12), puros entre os puros, e com Savonarola. O judaísmo é caso aparentemente menos claro, mas a pureza judaica também é perigosa e não pode chegar ao fundo dela mesma sem provocar o apocalipse.
Para o escritor francês, existe coincidência entre fanatismo da pureza e integrismo. Relaciona a coincidência com a descrença no pecado original, já que o integrista acredita na origem imaculada, a qual considera atingida por uma espécie de "bacilo", a ser destruído. É o bacilo judeu de Hitler, são os "insetos desprezíveis" de Lênin, o veneno "contra-revolucionário" de Saint-Just, a "peste das idéias" de Karadzic; é a fobia islâmica contra o Ocidente.
Nesse quadro, Lévy questiona se nós, os democratas, estamos em estado de saúde moral, ideológica e espiritual preparados para enfrentar o fanatismo da pureza contido no desafio integrista. A extinção do debate e a suspeita de tudo o que possa parecer uma idéia, na moderna sociedade democrática, leva-o a sustentar que ainda não chegamos a uma ditadura, mas estamos pouco próximos da democracia de Montesquieu, pois, desprezando o pensamento e seu debate irrestrito —marca de nossa época—, fazemos o jogo dos que não pararam de pensar.
Lévy desborda, porém, para o exagero quando, animado pelo propósito de provocar discussão, critica algumas práticas humanitárias destinadas a minorar o sofrimento dos atingidos pela violência. Tais práticas confundem, em sua avaliação, o humanitarismo com a política. Lembra a Etiópia nos anos 80 (a caravana humanitária dava o último conforto às vítimas), a Libéria (cuja guerra interna passou quase ignorada), a Bósnia, onde (sob desculpa de não fazer política) se encoraja o carrasco.
Erra, a meu ver, ao não reconhecer, ao menos, que os casos apontados teriam sido piores sem a ação humanitária. Procede, porém, sua pretensão de que o humanitarismo venha a distinguir o carrasco da vítima, o massacrado dos massacradores, para garantir o pré-requisito mínino de que estes sejam julgados, embora se saiba que nem sempre é possível atingir este objetivo. Na Bósnia, para ficar no exemplo atual, a violência se passa sob o olhar burocrático dos boinas-azuis. Termina com uma frase de efeito: "se houvesse soldados em Kafka, eles seriam certamente boinas-azuis."
Há um perfil primoroso da realidade democrática contemporânea, quando retrata o fenômeno mundial do "Estado-espetáculo" —que nós, brasileiros, temos conhecido. O "Estado-espetáculo" faz prevalecer a imagem sobre a palavra, a postura sobre o programa, a qualidade da performance sobre o enunciado ou a idéia. A arte do parecer sobre a arte de governar.
Não que o "espetáculo" em si seja novidade, mas alguns de seus traços são diferentes dos antigos. Assim é com a permanência (antes tinha hora e lugar, mas hoje é incessante), com a mentira confundida com a realidade (transforma o horror da Bósnia, de Ruanda em miragem). Você não decide: o "espetáculo" decide.
O império das novas regras do "espetáculo" tem efeitos sobre a conduta dos Estados. Antes o político lidava com o destino dos homens, com paciência e perserverança. Hoje, viver seu tempo é viver o tempo da imediatidade. O pensamento de Hegel ("tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real") pode ser substituído por um slogan: "tudo o que é real é visível, tudo o que é visível é o próprio real".
Mas não é só: o escritor diz que a história é mitologizada. Neste ponto, faltou-lhe reconhecer que foi assim, em todas as épocas, com a história-fato e a história-mito. O mal, é verdade, está agravado. Hoje se celebram grandes mitos, fazendo-os parecer reais, com tal intensidade que pode destruir as democracias ou impedir que elas nasçam.
Registre-se, no fim de século, o retorno ao "encanto da segurança", o apelo ao homem forte na maior parte das democracias —de que o Brasil ouve falar, com constância—, das "mãos puras" que devem limpar as estrebarias de Augias democráticas. Cria-se um clima de censura, de ordem moral, ao qual, acrescento, a mídia adere com forte dose de hipocrisia. Sem esquecer, anota Lévy, a importância desproporcional dada à bandeira da "luta contra a corrupção", transformando "pequenos juízes" na última encarnação da virtude política e, às vezes, da própria política.
Todo cidadão deve combater a corrupção. Todavia, nossas democracias sofrem distorções, mesmo nesse campo, que as submetem ao risco de verem corroídos seus princípios e o próprio cerne do tecido social que as mantém unidas.
Tudo se soma para a previsão trágica, na concentração dos quadros urbanos, de explosões de ódio e de fúrias, em confrontos selvagens, sem perdão; na multiplicação de novos pobres a criarem massas, aquecidas ou inermes, prontas a atenderem promessas de quem quer que seja. Nas periferias será normal viver com o sentimento de entrar vivo, na morte. As grandes metrópoles serão, frequentemente, presa das máfias e dos guetos. As guerras civis proliferarão. Os Estados Unidos cairão sob máfias planetárias, conclui o pensador francês, no ponto extremo de seu pessimismo.
A análise de Lévy vem acompanhada de um projeto —talvez um esboço— de soluções possíveis. O primeiro remédio recomendado parece, porém, muito fraco para tantos males: fabricar a alteridade. A sociedade ocidental sofre com a perda de seu velho rival soviético e, portanto, sente a necessidade de criar outro, o integrismo, o terrorismo, a delinquência, os imigrantes, seja o que for.
Cuida do refazimento da memória histórica para fugir da distorção que cultua simultaneamente o essencial e o acessório; que festeja a revolução francesa e o trem de grande velocidade; o caso Dreyfus e a abertura de um restaurante em Paris, pouco importando o evento, seu peso, sua pertinência, desde que ofereça oportunidade de que as pessoas possam pavonear-se. Há que evitar a memória elogiativa, se possível otimista, cuja corrigenda propõe e, nesse passo, com carradas de razão, para integrar o processo de salvação das democracias.
Também se pode recorrer ao nacionalismo, o meio mais clássico de resolver o problema da preservação social. Todavia, é preciso distinguir o nacionalismo bom do nacionalismo perverso, como era o de Hitler, para defesa dos direitos do homem contra os do sangue e da raça, assim evitando o que Hegel refere em sua "Filosofia do Direito", ou seja, o nacionalismo "mecânico", do povo "eleito". Lembro, ainda —mas no mesmo sentido de Lévy— os males que o nacionalismo detonou na Argentina, no episódio trágico das Malvinas, provocado pelas ambições de controle do poder, pelos militares.
Alternativa de solução, a ser examinada, é a do populismo, da idolatria do povo. Não fica clara a amplitude que Lévy quer dar ao termo, defeito grave, ante sua opção final por esse movimento, apesar dos defeitos que aponta, como a melhor solução de encaminhamento dos problemas das democracias.
Para o populista de Lévy, o povo é bom; quando destruir ou for despótico, o populista atribui culpa aos maus que o cativaram. O populista é contra os intelectuais, que pretendem traduzir a expressão do povo, desnaturada pela linguagem que utilizam, sendo preferível a linguagem crua. As instituições, o direito e as leis retardam a manifestação da vontade do povo e, por isso, o populista é inimigo das leis. Os políticos, ao representarem o povo, despojam-no.
Os exemplos europeus de Lévy encontram semelhanças no Brasil, quando o populismo, que ele desenha, atribui à ação dos representantes eleitos pelo povo a origem da corrupção. Quem diz representação, diz teatro; teatro é gambiarra, maquinação, manigância, tráfico. Lévy falha, no tratametnto do tema, ao omitir qualquer atenção à inexistência de outro meio, que não o de representação, para o exercício democrático de governo.
Bernard-Henri Lévy, ao fim, diz da necessidade de pensar sobre a eterna guerra da democracia, porque a democracia nega a sociedade sem debate, asséptica, pasteurizada. A guerra do democrata que não só aceita o litígio, mas o fomenta. A conjuração dos conflitos, pela conciliação das idéias, é mortal para as democracias. Argumenta contra o temor da chamada "luta de classes" (palavras perigosamente conotadas por sua genealogia), argumentando com Maquiavel: a "disunione" é a oportunidade do progresso, sua "vertu".
Termina com uma série de perguntas que ficam para o pensamento do leitor: é possível contentarmo-nos em sermos moderados, em face da extrema miséria de muitos? Os intelectuais, que são guardas de valores, podem fingir otimismo, quando tais valores se tornaram nichos da infâmia? Se respondermos sim, chegaremos a um apocalipse triste.
Tirante os exageros, sobre os quais chamei atenção, e verificadas as discordâncias possíveis —tantos são os assuntos levantados pelo livro— é evidente que este cumpriu o destino que lhe deu o autor: excita preocupações; agita temas relevantes da vida moderna que nós todos, mergulhados em nossa aflição urbana, nem sequer conseguimos perceber em sua inteireza.

Texto Anterior: O batismo do mundo segundo Wittgenstein
Próximo Texto: REVISTAS; HISTÓRIA; EDUCAÇÃO; RELIGIÃO; FAMÍLIA; FILOSOFIA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.